O Valor Interno. Olhar uma pessoa como se ela fosse apenas um interior, que podemos imaginar à imagem do que sabemos ser a sua história.
Convido-vos a olhar uma pessoa como um espaço físico invisível. Como se ela fosse apenas um interior, que podemos imaginar à imagem do que sabemos ser a sua história.
Se olhassem para mim, e partilhando sem pudor algumas informações de carácter pessoal, poderiam observar uma espécie de largo amplo, situado num local simples, totalmente rural. Nesse largo existe uma estrada comprida, com passagens por vários apeadeiros, onde sorvi e deixei experiências diversas. Estão alojadas inúmeras casas, muitas pessoas, e eu situo-me sempre de viés, um tanto ou quanto desconfiada do que o mundo foi tendo para me apresentar.
Podem lá encontrar a dificuldade de ter entrado numa escola onde não fui desejada, porque tinha apenas cinco anos, e a vitória de ter vencido essa minha “lacuna”, com louvor e distinção.
Podem ver uma mudança repentina aos dez anos de idade, altura pela qual conseguirão visualizar muitas perdas, internas e externas.
Os encontros seguintes foram pouco frutíferos, e, por conseguinte, existem por esta altura muitas procuras sem resposta, muitas respostas inesperadas, muitos percalços, e muitos dissabores, que ainda hoje praguejam teimosos, dentro de mim.
Podem visualizar o abalo de algum bullying, podem cheirar o odor da vergonha, podem ouvir alguns sons inquietos de solidão.
Se fecharem os olhos e me tentarem perceber de mais perto, poderão encontrar fragilidades nas palavras que soam a força. Podem detectar buracos negros na minha maior consistência, e podem assinalar sem medo inúmeras dúvidas, nas minhas maiores certezas.
Podem visualizar de tudo o que constitui o ser humano enquanto ser emocional, desde os êxitos aos fracassos, passando pelas zangas com o mundo, com o outro e comigo mesma.
Podem tentar idealizar o que eu posso ter sentido numa ou noutra ocasião, podem arriscar projectar a vossa pessoa em algum momento mais intenso, e podem ainda procurar imaginar o que eu senti, quando atravessei, perdi ou ganhei, alguma luta contra a vida.
Se conseguirmos empreender num exercício desta dimensão, talvez nos seja possível chegar um pouco mais à história de cada pessoa, sem nos focarmos apenas na matéria. Porque a matéria física e sensorial é necessária para a execução das experiências, mas não é suficiente para a significação mental que lhe atribuímos, facto que faz do Homem um ser complexo e completo, que dificilmente poderemos ousar analisar em totalidade.
Desta forma despretensiosa, poderemos olhar para cada ser como um indivíduo num total de experimentações, que o condicionaram e o encaminharam para determinada direcção, sem balizarmos a nossa análise num sem número de preconceitos e estereótipos associados à imagem e ao valor que lhe é atribuído.
Talvez conseguíssemos enobrecer a luta e premiar o esforço. Talvez fosse possível ofuscar o brilho da sorte, e ainda apagar as luzes da ribalta da presunção. Eventualmente talvez pudéssemos premiar a bondade, e imagino até a possibilidade de colocarmos a olho nu a ganância e a vaidade.
Compreendo que o exercício não será fácil, até porque nos coloca num contacto directo e permanente com a fragilidade alheia. Todos somos constituídos por inúmeras experiências complexas que nos transformam numa espécie de reservatório simbólico amplo e composto, mas ainda assim insisto na sua utilidade, enquanto acontecimento utópico potenciador da empatia, da sintonia e do respeito pela história alheia.
Comigo funciona muito bem. Tenho por hábito identificar pessoas pelas histórias e pelos trajectos, com avanços e com recuos, com medos e com zangas, com amores e desamores, sonhos e desilusões.
Desta forma quase me esqueço da importância socialmente atribuída ao estatuto, uma vez que elenco a minha hierarquia nos valores do esforço e da perseverança, da humildade e da superação.
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Carla Raposo Ferreira, é Psicóloga e escreve às Segundas-feiras no Rio Maior Jornal.