A utopia deste meu devaneio.
Considero, e enquanto terapeuta de saúde mental, que é absolutamente necessário para o nosso equilíbrio o desempenho profissional numa área que faça sentido a cada indivíduo. É um foco essencial do meu trabalho a orientação, o acolhimento à (in)decisão, a busca, incessante, de um caminho aprazível, a reorganização a meio do percurso, se for caso disso.
Não digo aos jovens que não alterem caminhos, se eles se considerarem enganados, nem os deixo à mercê do capitalismo, entregues a profissões que se rejam apenas por números absolutos, mas que esquecem a realização pessoal de cada qual. Não os norteio por métricas, por saídas profissionais, por percursos fechados e por bitolas estabelecidas por terceiros, que muitas vezes, sedentos de sonhos perdidos, projectam objectivos individuais no colectivo de cada família.
Quem me conhece, sabe que encaro a adolescência com um olhar de tolerância, de empatia e de respeito. Consigo olhar para eles e sentir o seu mundo, por entre capuzes das sweatshirts desbotadas e dos bonés atrevidos. Acho piada aos olhares gingões, à gíria, à crença em tudo ou em nada, à indecisão, à capacidade de projectar sem limites e invejo-lhe, vejam bem, a descontracção.
Sou capaz de embarcar com eles na música e na letra das canções que escutam, e sou pessoa para cantar com eles gritos de revolta que levem o mundo para um lugar melhor. Mas preocupa-me algumas questões, quanto a mim, essenciais, que se prendem com alguma falha generalizada na capacidade de esforço, e na procura de soluções práticas para a vida.
Estamos presentes, segundo algumas teorias, às gerações mais evoluídas de sempre, em múltiplos factores. Vieram ao mundo na era da tecnologia, da investigação, da globalidade. Na generalidade, não atravessaram infâncias devastadoras. A escola adaptou-se às suas necessidades, ajustou currículos, professores, matérias e objectivos.
Os pais deixaram de ser o centro, para passarem para os filhos de hoje grande parte dos seus investimentos globais: tempo, dinheiro, energia, protecção. Passaram a ser secundários a favor da estabilidade emocional deles, que cresceram eventualmente com menos desafios, menos trabalho e menos preocupações.
Se há uns anos eu teria de passar dias numa biblioteca para conseguir dispensar com uma nota menos má uma cadeira da faculdade, nos dias de hoje é possível aceder aos melhores arquivos do mundo, à distância de um click.
Se há uns anos eu tinha de sair de casa em direcção ao largo da cidade para saber que amigos iriam estar na rua, hoje basta uma mensagem de telemóvel para que saibamos ao minuto onde se encontra toda a gente, com toda a conveniência e inconveniência decorrente da situação (porque sair sem destino concreto, também tinha muito de bom).
Se nos anos noventa tínhamos de aguardar com ânsias que o filme da nossa vida chegasse ao videoclube, hoje as histórias entram-nos pela casa adentro à velocidade da luz, aos milhares, à hora que quisermos, com um bom café de máquina a acompanhar as pipocas de microondas.
Se há uns anos a capacidade de trabalho era valorizada, dando crédito ao emprenho e à persistência, no momento presente damos primazia às ideias, tornando o campo do simbólico como uma prioridade maior, com um fomento do imaginário e do digital, sobre todas as coisas. Não o desvalorizo. Não deverá haver classe profissional que mais preze o simbolismo do que a psicologia, mas não poderemos perder o norte ao concreto, sob pena de transformarmos a era actual numa espécie de vácuo, com muitos lugares em aberto, com demasiados lugares em aberto.
Pergunto-me muitas vezes onde esteve uma espécie de equilíbrio que talvez se tenha saltado.
Questiono-me com frequência o que poderemos fazer de diferente, e na realidade as questões amontoam-se em mim como ervas daninhas, também elas sem direcção.
Não atribuo a falhas, não tenho por hábito a acusação, aprazia-me mais alguma reorganização presente, onde pudéssemos reunir num mesmo corpo e de forma mais efectiva, a voracidade do inconsciente e a consistência da prática.
Seríamos invencíveis, facto que me atira, de cruz, para a utopia deste meu devaneio.
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Carla Raposo Ferreira, é Psicóloga e escreve às Segundas-feiras no Rio Maior Jornal.