Bordalo II, o artista que fez a passadeira de notas e que, seguindo o longo, mas democrático caminho europeu de laicização, colocou-a na escadaria papal, não escandalizou ninguém, tanto por ser ela uma obra de arte – seja lá isso o que for -, como por conter uma justa crítica social à igreja. Provavelmente, nem escandalizou o próprio Papa como indiciam os textos lidos pelo Chefe da Igreja Católica.
O discurso dirigido à cidade de Lisboa e o que teve os estudantes universitários como alvo, são duas obras literárias magníficas, poéticas (e estaria tudo dito por serem poéticas) e que, a serem assumidas como política doutrinária do Vaticano, revelam-nos uma igreja que se quer do lado de cá, do lado dos refugiados, das minorias, das vítimas dos abusos, dos mais frágeis. Por opção e não por exclusão, a igreja mais conservadora, digamos, aquela que é mais “missal”, mais “domingueira”, mas menos atenta às desigualdades e injustiças do mundo, é claramente preterida.
E embora os estados não professem qualquer fé religiosa, nós cidadãos europeus só temos a ganhar por a igreja católica se identificar com esta visão do mundo. Portugal, pelo que interpretei dos discursos do Papa (do Cardeal Tolentino, sem dúvida), pode desempenhar um papel charneira, tanto geográfica como culturalmente, neste contexto mundial demasiado desequilibrado, o que, do ponto de vista puramente literário, nos remeteria para o Quinto Império, do Padre António Vieira e Fernando Pessoa, onde, relembre-se, a cristandade imperaria e o humanismo português se confundiria com essa nova ordem mundial.
Sonhemos, porque Deus, assim, é um pormenor, como eu disse a um amigo.
Silva Porto