Este cinema ensina-nos que a ausência de propósito para a nossa vida individual pode, na verdade, ser libertador
Antes de qualquer coisa, quero apenas informar que esta crónica é totalmente livre de spoilers! Vai-me custar? Vai. Mas vai valer a pena para conservar a melhor experiência possível para quem ainda não viu? Oh se vai!
Querido leitor, deixe-me fazer-lhe uma pergunta de forma completamente irónica e apenas com a intenção de dar a minha resposta a essa mesma pergunta ignorando totalmente a sua, costuma ir ao cinema? É que eu sim, e há relativamente pouco tempo ouvi falar muito bem de um filme que estava em cartaz e não andava a ter muita comunicação. Não era nenhum grande blockbuster nem pertencia a nenhum franchise já estabelecido e também não era uma adaptação de uma obra já existente. Era original no sentido mais puro e, atualmente, raro da palavra.
Infelizmente, apenas os filmes mais lucrativos chegam às salas de pequena dimensão, não deixando outra solução senão dirigir-me a cidades com cinemas grandes que se podem dar ao luxo de arriscar em filmes mais independentes. Foi o que fiz, fui a Leiria para ir ao cinema e quando lá chego apercebo-me que Leiria não existe. De seguida, fui a Lisboa, só para chegar lá e descobrir que tinham retirado o filme do cartaz precisamente nesse dia. No entanto, e uma vez que já tinha feito a viagem, decidi aproveitar e vi o Sonic. Sim, dizer “aproveitar” é capaz de ser um esticão. Acabei por ver o filme em casa uns tempos depois.
Passando para o filme em si, tenho de admitir, que é qualquer coisa de fantástico quando sabemos que estamos a ver nascer diante dos nossos olhos um dos maiores clássicos que o cinema já viu, e que daqui a 50 anos vamos estar a falar deste filme como agora falamos de um “12 Angry Men” ou de um “The Matrix”. “Everything everywhere all at once” (trailer) aborda um drama familiar entre uma filha, uma mãe e um pai, que dão por si mergulhados numa narrativa multiversal altamente descabida e estranhamente comovente.
O filme começa logo com um primeiro ato acelerado mas com os pés bem assentes no chão, e não tem medo de demorar o tempo que precisa para nos aconchegar bem na cadeira e colocar um cinto à nossa volta para estarmos totalmente preparados para a viagem atribulada que aí vem. E o que aí vem, meus senhores, é uma reunião de extremos tão altamente improvável que até ao dia de hoje eu ainda não sei como é que o resultado final ficou tão bom. É como um padre que realiza casamentos tão aleatórios e inesperados como a ficção científica com o romance, a família com o kung-fu, o conceito de multiverso com filosofia clássica, o propósito da vida com comédia surrealista, a alucinação com a sanidade, a violência com o amor, o ridículo com o profundo, e o global com o pessoal.
É um filme que não acaba quando termina a sessão, continua bem presente na nossa cabeça durante longas horas. Isto acontece porque arrisca em abordar temas que são sensíveis a qualquer ser humano em qualquer ponto do globo. Estes temas vão desde discussões com pais até ao próprio sentido da vida. E é aqui que o filme me agarra, quando não tem medo de se tornar filosófico e confrontar-nos com um dilema de crenças entre o existencialismo e o niilismo. O que é ridiculamente interessante porque uma crença nasce a partir da outra.
No filme, existe uma personagem que começa a ter uma visão niilista do mundo e da vida, acredita que nada existe, que nada tem uma razão, que não há nada maior que nós. Enquanto que outra personagem, confrontada com as mesmas circunstâncias que levaram a outra ao niilismo, começa a cair também no buraco de acreditar que se nada interessa então ela não precisa de se esforçar. Contudo, esta última termina a história a conseguir olhar para essa mesma informação com uma lente totalmente contrária, uma lente existencialista, uma lente que coloca aos ombros do indivíduo a responsabilidade das suas ações.
Sei que parece confuso, mas acompanhe-me, este filme diz-nos que não existe nenhum propósito para a vida, não existe nenhuma razão para estarmos aqui, não existe nenhum sentido. E apesar disto, à primeira vista, parecer absolutamente aterrorizante, ele ensina-nos que esta ausência de propósito para a nossa vida individual pode, na verdade, ser libertador. A falta de sentido na vida é o que cria espaço para podermos criar o nosso próprio sentido.
É esta lição absolutamente maravilhosa que “Everything everywhere all at once” nos ensina, que na cara da adversidade, do medo e do desconhecido, podemos criar o nosso próprio propósito.
Claramente uma crónica não chega para encapsular tudo aquilo que eu gostaria de abordar e enaltecer, nem uma, nem duas, nem três crónicas. Mas veja este filme e vai compreender o quão difícil é exercer qualquer trabalho de síntese sobre este colosso do audiovisual.
Ainda podia falar de componentes mais técnicas como a montagem, a sonoplastia, a realização, o guião, as interpretações, e a maneira como o simples domínio destas técnicas resultou num rio de lágrimas durante uma cena com apenas duas pedras, imóveis, sem som, sem diálogo, sem artifícios, sem batotas. Mas isso já seria demasiado, ao mesmo tempo, em todo lado.
Veja outras crónicas de Bruno Rolo.