O legado que cada um de nós deixa.
A realidade ancestral, ainda que mutável pelo tempo, pelo crescimento e pela sociedade, assume um efeito de permanência, difícil de contrariar. Habituamo-nos a olhar para ela como uma espécie de verdade, que na grande maioria das vezes nem questionamos, por se tratar de território seguro.
Nesse mesmo território, manobramos a nossa acção sustentada pela sabedoria do corpo, que se adequa ao que lhe vai sucedendo de uma forma quase perfeita, toldando-se mais ou menos como uma planta que se eleva para os céus, arrumada à parede que lhe dá força.
Neste processo esquecemos por vezes a clareza, a individualidade, a liberdade, e entramos nele como entramos muitas vezes no mundo, sem perguntas, sem barulho, sem correcções e sem ambições. Não sei se pela facilidade que encontramos no costume, ou pelo medo com que nos defrontamos, se escolhermos mudar.
Olho para trás muitas vezes.
Não me canso de procurar onde comecei a encontrar as minhas dúvidas, onde nasceram as minhas revoltas, em que exacto ano me habituei ao que não gosto, e o que é que já fiz para de lá sair. Concluo que já fiz alguma coisa, mas que ainda assim me encontro longe do meu ideal de existir. Concluo que ainda permito muito do que não me apetece permitir, e que ainda sucumbo a alguns dos meus procedimentos de olhos bem fechados, como se não existisse uma outra forma de eu ser quem sou. Quando paro e penso melhor, depreendo que poderei alterar esta minha conduta a qualquer momento, “basta” para isso ousar responder mais a mim, do que ao outro.
Mas o outro insistiu em ensinar-me que muitas vezes estou errada. Ensinou-me que por ser mulher tenho menos força e menos poder de decisão. Ensinou-me que devo de certa forma obedecer e aprender sempre com quem sabe, usualmente o homem, que continua a exercer o seu Mansplaining de uma forma intensa, e convicta da sua superioridade.
Ensinou-me o certo e o errado, ensinou-me o bem e o mal, ensinou-me que me devo reger pelos valores que a sociedade considera serem maiores, e ensinou-me a duvidar de mim, e não das regras impostas pelo mundo. Neste perfil de continuidade, arrisca dizer-me que me educou para a liberdade, quando na prática o que fez foi acolher-me na sua essência protocolada e erudita, tratando-me como mais um membro da sua perfeita sucessão.
Hoje, muitos anos volvidos, olho à minha volta e encontro algumas diferenças na abordagem. O global perdeu peso em relação ao individual, e o ser enquanto indivíduo, foi conquistando algum lugar. Há pessoas que conseguem andar ao contrário do esperado, e ganhar a palavra. E há mulheres que conseguem convencer o mundo, sem tentarem vencer o homem. Há minorias que se fazem escutar sem gritarem alto demais, e sem pretenderem convencer o outro da sua razão.
Por vezes questiono-me se este conceito de razão não deveria ser desmontado desde muito cedo, nos primórdios da educação. Ainda não nos cansamos de educar pelo poder, pelo absolutismo, pelos ditames, incansáveis, da polarização. Enquanto educarmos assim os nossos filhos, de forma mais dominadora, exigimos deles uma enorme coragem, para a continuidade desta abertura que atrás descrevi.
Resta-me talvez concluir que iniciamos um caminho que não conseguimos enfrentar. Que o colocamos no colo dos mais jovens e que esperamos, (im)pacientes, que eles desbravem o resto e avancem, livres do medo que lhe continuamos a colocar, quando os “ensinamos” a ser pessoas. Nesta toada, fico na dúvida. Se a minha geração é grandiosa, porque tentou impulsionar, ou se é cobarde, porque abortou o plano, ainda antes dele se consolidar.
Veja outras crónicas de Carla Raposo Ferreira
Carla Raposo Ferreira, é Psicóloga e escreve às Segundas-feiras no Rio Maior Jornal.