Sombras – Lentamente vamos perdendo aqueles que nos amam e nós amamos!
«Devo dizer-lhe que é escassa a produção literária sobre a doença vascular cerebral. A razão é simples: é que ela seca a fonte de onde brota o pensamento ou perturba o rio por onde ele se escoa, e assim é difícil, se não impossível, explicar aos outros como se dissolve a memória, se suspende a fala, se embota a sensibilidade, se contém o gesto.”
Este parágrafo é do João Lobo Antunes e faz parte do prefácio do livro de José Cardoso Pires “De profundis Valsa Lenta” um livro que(me) marcou, pela narrativa e pela feliz coincidência do Escritor conseguir rever as memórias do AVC que o afectou.
A perda do sentido da nossa existência, afecta-me de modo particularmente grave, do ponto de vista emocional; defrontar-me com a possibilidade de ir caminhando ao longo do percurso de vida para uma situação em que a nossa capacidade de sabermos quem somos, simplesmente desaparece, é tão assustador que me deixa petrificado.
Seremos nós mesmo quando já não somos?
Ao visitar ontem a minha mãe, esta sensação impregnou-se nos sentidos e na carne.
Ainda estamos vivos, quando não sabemos quem somos?
Ainda estamos vivos quando não sabemos quem são os nossos?
Ontem a leitura, do De Profundis Valsa Lenta” passou-me diante dos olhos e em breve terei de satisfazer a pulsão da sua releitura.
Ontem as discussões dos trechos filosóficos sobre as concepções da realidade, que me preencheram parte do ano que antecedeu a ida para a Universidade, desinquietaram-me a mente!
O mundo existiria se nós, seres conscientes lhe não dessemos significado?
É lugar-comum dizermos que só morre quem é esquecido, e se nos esquecemos de nós mesmos não estaremos já mortos; ou pior que mortos, presos num purgatório de mortos-vivos.
Quem estará verdadeiramente neste limbo de mortos-vivos, aqueles que estão presos nesse mundo de sombras? Ou aqueles que distinguindo sombras da realidade ficam reféns das recordações dos que já não são vivos nem são mortos?
Sem consciência de nós, seremos crentes?
Sem consciência dos outros podemos ser nós?
Sem memória e sem consciência somos nós?
Já não somos sequer sombras! Somos cadáveres que vão adiando o dia do seu não-funcionamento.
Já não somos, fomos!
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