A Globalização e a Solidão
O mercado laboral mundial chegou hoje em dia a uma globalização sem precedentes.
A possibilidade das pessoas trabalharem a partir de casa possibilita que possamos desempenhar tarefas em qualquer parte do mundo, sendo que o leque de oferta é significativamente maior, em termos de possibilidades. Mas será que este facto constitui apenas vantagens?
M. é um programador digital. Licenciado em Informática e com mestrado em programação. É um especialista com uma capacidade cognitiva brilhante, mas com baixas competências sociais. Vive sozinho há alguns anos, e desde o início da pandemia que se vê enredado numa teia de desmotivação, por não estar a conseguir desempenhar funções na sua área.
Tem efectuado trabalhos indiferenciados que lhe vão permitindo manter algum grau de independência financeira (muitas vezes ilusório, porque independência financeira não se centra apenas em pagar a renda da casa e algumas despesas, e M. depende em muito dos progenitores para inúmeras situações de gestão pessoal).
No último ano, já apresentou candidaturas a diversas oportunidades, quer a nível nacional, quer a nível internacional, mas esbarrou sempre na concorrência. É que se até há um tempo atrás, os lugares eram disputados com candidatos locais, físicos, entrevistados in loco com um currículo de papel, hoje os candidatos chegam dos quatro cantos do mundo, virtuais, apresentando perfis de competências à distância, e evidenciando necessidades salariais muito dispersas, dependendo do local de onde se candidatam.
As vantagens são a amplitude de ofertas, mas a concorrência que se enfrenta, pode ser uma desvantagem seriamente preocupante. M. sabe disso, e tem noção do impacto que isso tem na sua carreira, entretanto suspensa por falta de oportunidade.
M. é também doente psiquiátrico, seguido em Hospital, em consultas efectuadas à distância. A médica tem 15 minutos de seis em seis meses para, numa teleconsulta, perceber em que patamar se encontra a sua bipolaridade, e para reajustar a medicação que faz há anos, e que o acompanhará vida fora, com os altos e baixos inerentes à doença ( e à vida). Em caso de necessidade urgente de monitorização, M. pode ligar para o hospital, que tentará chegar à médica, uma especialista de renome, muito ocupada, que eventualmente poderá entrar em contacto muitos dias depois. Ou não, se o esquecimento ou o desajuste assolar a sorte de M., que nesse caso terá de se ajustar sozinho, de preferência sem proceder a alterações medicamentosas, pois se o fizer, poderá perturbar a continuidade terapêutica.
Os pais nunca lhe viraram as costas, mas querem que trabalhe, e gostavam que ele fosse mais autónomo. M. também gostava, mas sente-se sozinho. Sente-se sozinho porque no exercício da sua actividade, não consegue estabelecer relações profissionais de confiança, porque não consegue trabalho na sua área, o que o desmotiva, e ainda porque a nível clínico se sente muito desamparado, uma vez que não há presença física, não há facilidade de contacto telefónico, não há respostas de emergência. Socorre-se de um vizinho muitas vezes, para fazer frente a esta solidão. Uma presença real, com a qual joga alguns jogos de tabuleiro, e que o ajudam a manter uma realidade fora do patamar virtual. Mas como o próprio refere, e não sei se já o tinham verificado, M. não é considerado uma pessoa com sorte, e como tal, aqui também nem corre tudo bem.
O vizinho, por questões de doença, passa algum tempo fora, na casa dos filhos, altura em que M. fica ainda mais solitário, conectado nas suas redes sociais, vazias de conteúdo. “-Tens de arranjar ocupações”, dizem os pais, orientados para a necessidade de M. se tornar independente. “- Tens de trabalhar”, afirma a psiquiatra de dentro do ecrã do pc, muito focada, também ela, na proactividade de M. (entretanto perdida no meio de anos de pandemia, e de um rol de opções desorganizadoras ao ponto de o deixar confuso, sozinho, sem norte).
Até agora, há bem pouco tempo, ninguém tentou saber como M. se sentia. Toda a gente se encontra focada em produtividade, subsistência, resistência, adaptação, mas ninguém olhou suficientemente perto para M., para perceber que se encontra num processo severo de isolamento e inércia, movido por um mundo cada vez mais capaz de inserir pessoas no topo profissional, sem que associado a isso se desenvolva uma história, uma relação, uma existência ( à medida que vamos adaptando o mundo à globalidade, vamos na sequência desprezando o que nos engrandece enquanto pessoas).
M. sabe que quer voltar a trabalhar. Sabe que quer ser independente e que quer superar esta fase. Sabe que este mundo não gosta dele, ele próprio não aprecia este mundo. Sabe ainda que, apesar disso tem todas as portas aparentemente abertas, escancaradas, livres, vastas. Curiosamente, nunca se sentiu tão limitado como agora. E claro, também nunca esteve tão sozinho.
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Carla Raposo Ferreira, é Psicóloga e escreve às Segundas-feiras no Rio Maior Jornal.