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Saudade

Saudade, um vestígio único do povo português

A semântica sui generis da palavra Saudade…

O novo ano letivo acaba de começar! Muitos sentem saudade da última vez que pisaram os corredores da escola/universidade, levando gravado na memória todas as recordações que fazem parte do passado.

Não aceito a ideia de que esta palavra pode ter uma tradução. É controverso? Dispenso saber! Sempre me ensinaram a defender os meus ideais «com unhas e dentes». Enquanto português, e tendo em conta o ponto de vista literário, entendo que esta palavra é nossa, é algo que nos pertence, é património nacional e linguístico, que caracteriza a História do nosso povo, da nossa nação.

Recentemente, decidi investigar a sua origem. A etimologia desta palavra é frequentemente tema de discussão, dando origem a várias especulações. Atualmente, a mais provável remete para a origem latina, em solitate, que deu soidade (em galego, como é verificável em textos da época), que mais tarde dá saudade.

Acredita-se que a mesma passou a fazer parte do dicionário dos portugueses no tempo dos Descobrimentos Marítimos. Contudo, este sentimento navega nas veias portuguesas desde sempre. Já na poesia trovadoresca, primeira grande manifestação da literatura portuguesa, as temáticas abordadas muitas vezes remetiam para o saudosismo patente nas sociedades. Por um lado, inerente à ausência do amigo, que marcava presença no fossado; por outro lado, relacionado com a indiferença da «senhor» face ao enamorado.

Que soidade de mia senhor hei
quando me nembra dela qual a vi
e que me nembra que ben’a oí
falar; e por quanto bem dela sei,
       rog’eu a Deus, que end’há o poder,
       que mi a leixe, se lhi prouguer, veerD. dinis, B 526a, V 119

Aliás, o tema da saudade é quase obsessivo na Literatura Portuguesa e característica dominante de outras manifestações culturais e artísticas. Considero, contudo, que esta abordagem apresenta duas fases. Nos seus primórdios, numa fase Pré-Descobrimentos, há a tentativa de recuperar o «paraíso medieval português», sendo estes vestígios autênticos desenhos do quotidiano da época, havendo um valor histórico de grande magnitude. Numa segunda fase, após os descobrimentos, a voz do «lavrador-poeta» dá espaço ao «navegador-guerreiro», aquele que através dos «mares nunca dantes navegados», chega à Índia, enfrentando o «Gigante Adamastor». Posto isto, um leitor assíduo de Camões consegue identificar que através da abordagem ao mito sebastianista, importa destacar a imagem ideal da época dos descobrimentos, uma altura de grandes conquistas, que deixa saudades a qualquer ser português. Ainda numa visão literária, é fulcral realçar que também Bernardim Ribeiro, através das suas Saudades, António Nobre, com a obra poética , e Fernando Pessoa, também tocaram na temática saudosista.

Olhando para o nosso quotidiano, é evidente que quem ouve rádio no carro, por exemplo, uma vez por outra ouça a palavra saudade numa música. Ou, ainda, a partir de uma conversa com alguém, este sentimento seja revelado de uma ou de outra maneira. Só parei para pensar nesta problemática quando refleti que «o fado é a expressão mais popular deste gosto de ser triste, é um lamento entrecortado de soluços», pelas palavras de António José Saraiva.

Saudade, 1899, óleo sobre tela, 197 cm x 101 cm., Almeda Júnior, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Para mim, a música «saudade, saudade», que representou Portugal no Festival da Canção 2022, apresenta não só a beleza da sua significação, mas também destaca o que inicialmente defendia – a sua intraduzibilidade. No entanto, considerá-la-ia a vencedora se fosse cantada em Português na sua totalidade (a valorização dos nossos símbolos nacionais…)

O autor Teixeira de Pascoaes, num dos volumes da revista A Águia, afirmara que «A Saudade é o próprio sangue espiritual da Raça;». Deste modo, a Saudade maiusculada enfatiza a força desta realidade para o povo português, quase como se fosse uma entidade entre nós (para mim, tem sido uma presença constante).

Que saudades terei de si, minha querida tia!

In proximum…

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António Coito
António Coito é estudante da Licenciatura em Português na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e estagiário na Fundação António Quadros. Além disso, desempenha várias funções, sendo Vice-Presidente da Direção da ATUAAÇÃO, Cidadão-deputado da Comissão de Educação e Ciência do projeto "Os 230" e Membro Suplente da Mesa do Plenário do NEFLUC. É também embaixador da Universidade de Coimbra e bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Interessa-se por temas como o Ensino da Literatura, a Formação (inicial e contínua) de Professores e os Hábitos de Leitura na Sociedade Atual. Escreve quinzenalmente para o RM Jornal.