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Sanna Marin
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Sanna Marin – Mulher

Sanna Marin – Uma polémica (Des) Necessária

Para iniciar esta reflexão, convido-vos a olhar para o mediático caso da primeira ministra Filandesa, Sanna Marin, que num período de lazer se permitiu divertir de uma forma livre, onde dançou e onde se deixou levar pela descontração do momento.

O moralismo ofendeu-se, como sempre, e da boca de homens e mulheres escutei e li mais ou menos as mesmas visões, as visões de sempre. Algumas ditas de forma subtil, mas sempre professoral, inundadas de uma superioridade que teima em não abandonar o mundo: eu sou sabedor, eu sei o que é certo, a mim cabe-me julgar o que pode ser feito e o que não deve ser sequer considerado. 

Muito se tem falado sobre a evolução dos direitos das mulheres.

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Muito se tem caminhado no sentido de perseguirmos, nos mais diversos campos de acção, um percurso que nos permita ascender a patamares de consideração social global, sem discriminação e validação da violência, e com o incremento de uma visão estrutural mais uniforme, que inclua também outras eventuais minorias que permanecem em luta há anos.

Muito se fez desde a época em que as mulheres “pertenciam” aos maridos, e em que nada na sociedade permitia quebrar este poder, concedido pela Igreja, pelo estado, e pelas pessoas que encaravam  esta pertença como um caminho de uma suposta “protecção”, ora vejamos: há uma espécie de conspiração na teoria do cuidar, que varia desde o nascimento até à idade adulta.

Como se na assumpção da maternidade coubesse à mulher cuidar, nos afectos, na génese do ser, na alimentação e na protecção, para no crescimento esse cuidado (adulterado, obviamente) se transmitir para o homem, que continua a vencer na escala mais alargada da autoridade, da responsabilidade, do governo e da decisão. Um bebé é dos afectos, é pequeno, pode pertencer ao universo feminino. Um adulto é cognitivo, é racional, apenas vingará na razão do masculino. 

Hoje a escala de deveres sofreu algumas alterações, fruto de inúmeros movimentos que se têm empenhado na conquista de uma suposta igualdade, que respeite a diferença e enalteça a necessidade de funcionarmos de uma forma mais igualitária, independentemente das questões de género, nas mais diversas vertentes que pode assumir.

Caminhou-se. A mulher conseguiu uma maior emancipação financeira, conseguiu acesso à educação, ao mundo laboral, no sentido de carreira, e deixou de assumir o papel único de cuidadora, passando a poder partilhá-lo. Teve um trabalho fortíssimo ao longo de séculos para que lhe fossem reconhecidos os direitos básicos de ser pessoa, de participar na democracia, de poder sonhar com uma vida mais abrangente, sem deixar de ser mãe. Mas apesar disto tudo, continuo a sentir que está (quase) tudo por fazer. E está quase tudo por fazer porque a essência da mudança de paradigma permanece imutável ao longo dos tempos.

Permanece num território cinzento, que poucos (em qualquer género), pretendem desbravar. Permanece submersa pelo medo de encararmos todas as pessoas num ciclo de existência global, onde não interessa a identificação ou a genética de cada um, passando finalmente a tónica para a pessoa: ou seja, a questão não pode residir no concreto.

É sabido que necessitamos de ordem. Que gostamos de sentir que o mundo está estruturado de forma específica, onde de um lado reside a razão, e do outro habita a emoção, território de demónios e de outras fantasias. Neste inconsciente mais bravio permanecem os desejos, brotam as palavras insanas, nascem as atitudes condenáveis, contrariadas apenas por quem consegue impor a ordem no mundo, seja através do poder físico, seja através de uma espécie de sensatez, que parece continuar a pertencer, por ancestralidade, a seres superiores, eruditos, maioritariamente homens, heterossexuais, portadores de bons costumes na religião, na sociedade, na família. São eles que pregam, são eles que norteiam. São eles que assumem a liderança de um circuito obscuro, uma vez que na prática, quando a claridade atenua e a penumbra despe o ser, a sua condição global revela-se.

E tudo isto reside muito mais intrincado na essência da vida do que qualquer direito ou qualquer conquista que se tenha alcançado até hoje. E permanece inalterável no tempo porque vai além do que qualquer texto consegue ditar, do que qualquer grito consegue alcançar, e do que qualquer direito consegue ultrapassar: entra no inconsciente, na construção da identidade de cada ser humano, que continua a defender dicotomias seguras e, paradoxalmente, potenciadoras de desordem, porque assumem a existência da estratificação e dos saberes, uma brilhante forma de protelar a diferença, a submissão, e a total negação do igual para igual. 

Se Sanna Marin fosse um homem, estava apenas a divertir-se, mas sendo uma mulher está na loucura incauta do contra-senso e do despropósito.  Não pode, dizem homens, e, pasmem-se, dizem as mulheres. Tudo porque a essência mantém-se no mesmo exacto lugar onde o “poder” masculino responde à nossa necessidade de segurança e controlo, com tudo o que este absolutismo obsoleto pode encerrar. Enquanto a “fragilidade” feminina continua a necessitar de colo, permitindo que o culto colectivo continue a fomentar a desigualdade, a diferença e a contenção. 

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Carla Raposo Ferreira, é Psicóloga e escreve às Segundas-feiras no Rio Maior Jornal.

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Carla Raposo Ferreira
Psicóloga, Terapeuta do luto. Exerce clínica privada nos distritos de Santarém e Leiria.

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