Responsabilidade Social, Eleições e Não Só
Há quarenta anos atrás o dia das eleições acartava um ar de seriedade e de responsabilidade. Começava cedo, e a aldeia vestia-se a rigor na forma e no conteúdo ( a forma só pela forma é algo vazio), disposta a celebrar a vitória de poder escolher cada governo.
As pessoas vinham cansadas de submissão, e reconheciam a batalha, ainda recente, pela democracia, pelo que muito facilmente cumpriam e valorizavam o seu direito de voto.
Na minha aldeia votava-se na escola primária, e era costume eu acompanhar os diversos membros da família, a várias horas do dia. Não raras vezes tentava influenciar a tendência do voto, e recordo-me como se fosse hoje, de alguém próximo votar em Maria de Lourdes Pintassilgo, completamente contra a minha vontade, que na época perseguia cegamente outras convicções da família Ferreira.
A minha imposição era de tal ordem, que houve necessidade da mesa de voto intervir, na pessoa da minha prima Lídia, que necessitou de gritar bem alto: “ – Mas afinal quem é que está a votar?”. Remeti-me à minha insignificância e rumei para casa, contrariada, muito ciente das minhas certezas, alicerçadas na época em coisa nenhuma, como seria de esperar. Não me lembro de ser necessário qualquer apelo para que as pessoas se sentissem envolvidas neste dia, respeitando os seus ideais, e lutando pelo que lhes fazia sentido, mas sempre na senda de um país melhor e com mais condições de vida. Invariavelmente era um dia muito importante, com almoços familiares e outros eventos no decorrer da tarde.
Hoje, muitos anos volvidos, deparo-me com um ambiente social totalmente diferente. O voto tem de ser relembrado muitas vezes como um dever, e o direito conquistado já quase ficou esquecido. Existe uma permanente sensibilização de quem o considera essencial perante uma grande faixa da população que se abstém, e que ao longo dos anos decidiu afastar-se da vida política, assumindo eventualmente um papel passivo de crítica, sem construção.
Não me parece sensato encarar este dado como uma resposta a políticas que não agradam aos cidadãos. Ouço este discurso inúmeras vezes, numa assumpção quase colectiva de que este argumento valida a abstenção.
Independentemente da crença nos governos que assumam o poder, cabe a cada cidadão intervir de forma activa na construção da sua própria identidade política e social, sendo fundamental ampliar a consciência de todas as gerações da sua própria responsabilidade, na construção do país onde residem.
Salto de imediato para outro patamar, externo às eleições.
Com alguma crise de valores presente nos tempos que atravessamos (muito embora considere, na minha óptica, que as gerações mais novas estão mais sensíveis para este facto), encontro com relativa facilidade a desistência, como um remédio para muitos males. Uma espécie de afastamento do que importa, do que implica energia interventiva, do que carece de investimento pessoal, tempo e pensamento. Uma inércia resistente à mudança, que impede a evolução, mas que é mantida como uma zona de conforto onde o mundo é seguro, conhecido, mesmo que o mal não acabe, e o bem não consiga germinar. Neste tipo de paradigma a estagnação assume-se como o pior dos males, uma ameaça à humanidade, tanto na evolução pessoal como na evolução social e política, uma espécie de entrega do que nos pertence, à decisão da praça pública.
Seria urgente, a meu ver, a redefinição de prioridades no que toda a esta capacidade de resposta. Começando pelo voto, pela importância do dia de ontem, onde cada cidadão tem por obrigação uma participação efectiva, irrefutável, impossível de declinar, passando para os patamares diversos da vida, pessoal e social, num desenvolvimento da capacidade de pergunta e resposta, da procura de soluções, da elaboração de metas, da definição de objectivos. Dotar as gerações mais novas da faculdade de reflectir em sociedade, irá elevar os cidadãos a estados mais efectivos de existência, numa consciência ampla do que é ser pessoa e ser ao mesmo tempo parte integrante de uma comunidade.
Uma sociedade em que alguns dos elementos se demitem, não só é uma sociedade incompleta, como é uma sociedade dividida e sem coesão social, um dos principais alicerces para a construção do bem comum.
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Carla Raposo Ferreira, é Psicóloga e escreve às Segundas-feiras no Rio Maior Jornal.