Os Profissionais de Saúde
O País e o mundo continuam a atravessar uma crise sanitária que não nos deixa respirar de alívio. Muitas vacinas depois, a esperança da protecção parece continuar na mira de um projecto, que ainda nenhuma farmacêutica, com toda a ciência e interesses económico envolvidos, conseguiu vencer. Os números são animadores, dizem os especialistas, mas na prática continuamos a ficar doentes, continuamos a morrer, continuamos a estar presos a normas que supostamente nos irão proteger da pandemia do século. A hipervigilância mantém-se ao rubro, sob pena de, no baixar da guarda, darmos tréguas fatais ao virus que chegou, viu e venceu.
Quem governa, certamente continua perdido entre os caminhos da segurança, da sustentabilidade, do poder próprio (impossível de desconsiderar), o lugar na fotografia (ninguém quereria enfrentar, mas todos querem vencer). Quem vive, vive cercado entre a auto-protecção e o medo, entre uma notícia e uma nova vacina, entre uma primeira dose, uma segunda, uma terceira, quem sabe se uma quarta ou uma quinta, na senda da saga mutante. Quem noticia, vibra por uma boa dose de pânico, o móbil certeiro para agarrar audiências, tantas vezes sedentas de calamidade. Quem informalmente acompanha, vive também inundado de verdades absolutas, erguidas a martelo num curso de vida qualquer ( sem desprimor, apenas por vezes sem humildade e sem rigor), mais certeiro do que qualquer verdade científica. A era sustenta-se desta caminhada inglória, frágil entre a vida e entre a morte, entre a saúde e a doença, numa linha muito mais ténue do que a certeza da nossa debilidade perante um vírus minúsculo, adaptativo, pouco complacente com guerras que o tentem debelar.
E depois, existe quem na frente de combate se empreende para fazer frente à necessidade. Existe quem se vale da sua dedicação, da sua lealdade à profissão, da sua vocação e do seu saber, para dia após dia, noite após noite, olhar de frente para a consequência deste ataque. E fá-lo sem vacilar, sem descansar, sem se valer dos seus direitos (porque na legislação existem serviços mínimos que têm de garantir, sob pena de quebrarem os juramentos a que se propuseram). Estão há quase dois anos a trabalhar dentro de batas completas, máscaras apertadas, tensão e terror. Passam os seus dias entre pessoas que arrastaram doenças curáveis devido ao medo, entre pessoas que tremem assustadas pelos seus, entre visitas canceladas e entre suspiros de sofrimento e solidão. Sim, porque a actualidade é mais solitária do que nunca (mais parece um fado ou um castigo, que hoje nos pune pelas escolhas dos últimos dez anos, que privilegiavam dispositivos em detrimento da presença humana). São estes profissionais de saúde que tantas vezes levam a notícia que ninguém quer, que descobrem que o fim chegou antes do tempo à cama isolada no piso 0. São eles que no fim do dia regressam a casa sem saber se estarão sãos ou infectados por um descuido qualquer, que ao fim de meses a fio já se cometeram incontáveis vezes, como qualquer cansaço na frente de uma guerra. E são estes profissionais de saúde, estes que trabalham com a sabedoria, mas também com o coração e com a dedicação extrema ao outro ser humano, que a política do país vota ao esquecimento. São estes profissionais de saúde que acumulam horas, que se adaptam ao inadaptável, que se dedicam muito além do razoável, que continuam a ser desconsiderados por um sistema que parece aprender pouco com tudo o que tem acontecido. Assusta-me esta ignorância no poder. Assusta-me toda a inversão de prioridades que continuamos a assistir sem que nada aconteça. Assusta-me ainda a ignorância que escorre da boca dos grandes, que falam desta humilde resistência, que nos tem salvo sem limitações e com garra, como se falasse de uns seres exigentes, que deverão ter paciência, resiliência, consistência, quando na verdade eles têm tido tudo isso. Sempre.
Em tempos, batemos-lhes palmas. Fomos à janela em ovação, erguemos vivas, dedicámos músicas, programas, ouvidos e atenção. Mas continuamos longe de alcançar a grandiosidade dos seus actos. Tudo porque nunca nos debruçamos convenientemente sobre a arte de cuidar. Tudo porque não sabemos o que é essa nobre tarefa, que tem tanto de divino quanto de exigente. Tudo porque a dispersão do essencial continua a pairar nas esquinas do tempo, independentemente de todas as ameaças que ousamos enfrentar. Não sei ao certo o que nos faltará para retomarmos o percurso da proximidade, da partilha, do reconhecimento e do agradecimento. Porque mesmo no limiar da fragilidade humana, conseguimos viver ignorantes destes valores.
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Carla Raposo Ferreira, é Psicóloga e escreve às Segundas-feiras no Rio Maior Jornal.