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Política Tablóide

A POLÍTICA TABLÓIDE

E a Crise da Democracia

Por João de Almeida Santos

NORMALMENTE, A CATEGORIA “TABLÓIDE” aplica-se ao universo da comunicação mediática. O nome tem a ver com o formato dos jornais e com o tipo de imprensa que antes se designava por imprensa amarela, já nos finais do século XIX, nos Estados Unidos, Imprensa popular.

Uma imprensa que sempre explorou o básico da natureza humana. Eu defino-a através de uma simples palavra: o negativo (embora nesta categoria caibam outras características mais concretas, o drama, a catástrofe, o emocional, o íntimo, o sexo, entre outras).

A exploração do negativo em todas as suas variantes, em todos os seus géneros. A exploração dos instintos primários do ser humano. O objectivo é claro: atrair a atenção, aumentar a audiência e, naturalmente, vender publicidade para ganhar poder junto dos consumidores e, naturalmente, reforçar o poder financeiro.

Comércio puro, lá onde um importante bem público desce à categoria de mera mercadoria. E, naturalmente, deste modo, também ganhar poder e influência junto do poder político, de forma cada vez mais intensa, numa espiral mercantil que se afasta cada vez mais dos códigos éticos.

Em geral, do que se trata é simplesmente de obter sempre mais poder, em todas as dimensões. À imprensa tablóide (quase) nada interessam os chamados códigos éticos ou a função social dos media. Nada interessam normas que já vêm do século XVII, desde o chamado Código Harris, de 1690, passando, depois, pelo da famosa Enciclopédia de Diderot e D’Alembert (1751-1772), e que haveriam de se consolidar naquele que é considerado o primeiro código, em 1910, o chamado Código de Kansas, expandindo-se, depois, numa multiplicidade de códigos, de que destaco, pela sua importância, a resolução 1003, de 1993, sobre a “Ética do jornalismo”, do Conselho da Europa.

O que, no final do processo, interessa a esta imprensa é a dimensão da audiência nem que para isso faça do mexerico a única razão da sua existência e da sua actividade. Ainda por cima, a coberto da chamada liberdade de imprensa, da sagrada liberdade de imprensa, consignada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e na, tão exibida, I Emenda da Constituição dos Estados Unidos, de 1791.

I.Os Géneros Tabloides

EM BOA VERDADE, os géneros do tablóide são muitos. Tantos como os géneros informativos. E os media que os praticam podem ser divididos em dois tipos: os que são abertamente tablóides e o assumem; e os que, praticando um tabloidismo mais sofisticado, o disfarçam, exibindo uma folha de serviços prestados à cidadania, normalmente denunciando os abusos de poder (e bem) e reivindicando até o poder de oposição ao poder democrático instalado e legitimidade para isso (e mal, como dito na referida “Ética do Jornalismo”, com Conselho da Europa). Mas o verdadeiro problema começa quando a missão estratégica dos media se converte exclusivamente em informação sobre o negativo (desastres, corrupção, escândalos, etc.). Quando a ideologia do negativo se torna sistémica. Isto, num poder que já na segunda metade dos anos 30 do século XIX, em “Da Democracia na América”, Alexis de Tocqueville o considerava, além do poder soberano do povo, o primeiro poder.

Um poder que, na sua matriz, acolheu espontaneamente a ideia liberal de liberdade: a liberdade negativa. O que nos inícios fazia sentido, perante o absolutismo e os regimes censitários, com a liberdade cerceada pelo poder invasivo e exclusivo do do monarca e do Estado, mas que, hoje, já não se adequa às sociedades plenamente democráticas. Até porque, a partir de Bismarck, se desenvolveu, paulatinamente, o próprio Estado Social.  Na história da imprensa, esta concepção pode ser considerada dominante e, hoje, ainda mais, pois alia a esta concepção negativa de liberdade (perante o poder invasivo do Estado)o culto da categoria do negativo como princípio informativo dominante, por razões de audiência, de publicidade e de autofinanciamento, numa época em que o Estado já se retirou da área da informação (e bem), enquanto proprietário.

Ou seja, dois em um. O que torna os media, e em particular a televisão, “príncipe dos media”, na expressão de Denis McQuail, um poderoso centro de poder. E uma espécie de justiceiro electrónico ou digital (em todos os géneros informativos) com a respectiva componente punitiva e pública: o pelourinho electrónico. Condena e castiga, vigia e pune. Ou seja, os media que, substituindo-se ao povo soberano, se assumem como o seu autêntico intérprete ou oráculo (“os espectadores gostariam de saber…”, dizem entrevistadores sem mandato) em aberto e permanente antagonismo ao poder político ao ponto de, paradoxalmente, se tornarem a sua outra face. Há neste fenómeno um processo de identificação: os media são o negativo lógico do poder e por isso partilham da mesma natureza ou identidade, do mesmo género. Duas espécies do mesmo género – o poder. Até que, por fim, cheguem – já chegaram, mais uma vez – os apóstolos militantes da política tablóide, os que assumem e metabolizam essa identidade: esses que reivindicam o poder para o devolverem simbolicamente ao povo através da mediação do oráculo que, dirão, ouve directamente a sua voz. Uns e outros ao serviço do povo soberano na gestão do poder, o seu género comum, com o povo a desaparecer de cena perante a nova dialéctica entre os mediadores – política e media. Este processo foi brilhantemente desmontado por Karl Marx na “Crítica da Filosofia Hegeliana do Direito Público” (Kritik des Hegelschen Staatsrechts), de 1843, e sobre ele haveria de se afirmar a famosa escola dellavolpiana, em Itália.

II.

BEM SEI, porque a frequento, que há boa imprensa (sobretudo imprensa escrita), mas a tendência mais frequente, transformando-se em tendência sistémica, sobretudo no audiovisual, é esta. O ambiente mediático português é um exemplo muito ilustrativo, em particular o dos telejornais em canal aberto. Ora eu creio que, seja ou não o poder mediático a outra face da moeda do poder, irmão gémeo do poder político, também a política, talvez por clonagem, se tem vindo a tornar sobretudo política tablóide, como se vê pelo fenómeno populista em crescimento na Europa e por esse mundo fora. Também esta política se alimenta sobretudo (ou exclusivamente) do negativo, neste caso, denunciando as elites dirigentes, os intermediários institucionais, seja na política seja na comunicação (os inimigos de Trump eram as elites de Washington e os media), e reivindicando o direito de devolver o poder e o saber confiscados ao povo soberano, nem que seja através de tweets ou de publicidade 4.0. Mas não é só aqui que este género político acontece. Ele acontece quando os protagonistas pretendem afirmar-se politicamente usando exclusivamente a arma do negativo, da denúncia, do dedo apontado, confiantes que essa arma lhes dará notoriedade, capacidade de polarização da atenção social sobre eles e que, consequentemente, a notoriedade lhes dará força social, eleitoral e política. Um processo em todo igual ao da imprensa tablóide. Esta técnica tem vindo crescentemente a ser usada em todos os géneros incluindo até nos personagens que, por uma razão ou por outra, ocupam os interfaces da comunicação, usando-os com esta categoria para reforçarem a sua presença no espaço público e, consequentemente, o seu próprio poder e notoriedade pessoal. Hoje usa-se, nas plataformas digitais, essa palavra miraculosa que até passou a designar uma profissão: “influencers”. Os “maîtres à penser”, primeiro, deram lugar aos “opinion makers” que, agora, com as redes sociais, se tornaram “influencers”. Dos filósofos aos idiotas de serviço. Muitos deles, sejam eles “opinion makers” ou “influencers” aplicando o negativo às suas próprias famílias políticas, na convicção de que, assim, o “produto” se revelará mais apetecível e até mais credível.Roupa suja lavada na praça pública pelos membros da família. Exemplos em Portugal não faltam. Em todas as tendências políticas.

Na verdade, desde que a televisão ocupou, a partir dos anos cinquenta, sobretudo nos Estados Unidos, o centro da comunicação social que este processo de tabloidização da política tem vindo a crescer, na própria medida do crescimento dos media. É um fenómeno bem conhecido de todos os que estudam as relações entre a comunicação, os media e a política. E das teorias dos efeitos sociais e cognitivos dos media. Mas talvez nunca como hoje se tenha verificado um uso tão despudorado desta categoria, o tabloidismo, na comunicação e na política, sem ninguém que consiga pôr cobro a isto, apesar de a enxurrada muitas, demasiadas vezes, pôr o país em depressão e de o fenómeno do mimetisto alastrar em grande escala.

III.

NA VERDADE, estamos já perante uma poderosa ideologia que, aliada à ideia de liberdade negativa, à ideia de que os media são contrapoder e à protecção constitucional e legal de que dispõem, tem uma eficácia e um impacto difíceis de combater. Porque, munida destas características, apela aos instintos mais básicos da natureza humana para polarizar a atenção social. E não serve de distracção sobre o que vai mal na informação mediática invocar as redes sociais como o império do mal e do vulgar porque basta abrir os telejornais da oito para constatar até à náusea o que é o tabloidismo mais desbragado. Os populismos também são filhos directos desta ideologia, tal como todos aqueles que, vivendo em democracia, reduzem a sua vida e a razão da sua existência à procura do negativo, sob as mais variadas formas, para logo o exibirem publicamente sem se preocuparem (ou, pelo contrário, alimentando-se deles) com os efeitos que essa exibição sistemática pode ter quer sobre a sociedade em geral quer sobre os indivíduos singulares objecto de atenção. Seja nos media seja nas redes sociais. Castigadores justiceiros com a missão de resgatar o povo oprimido. A política e a comunicação espectáculo, fazendo-nos recordar sempre o célebre livrinho do Guy Debord, La société du Spectacle (1967). O justicialismo político entra directamente nesta categoria, sendo certo que ele possui as mesmas características do tabloidismo mediático.

IV.

ESTA DEGENERESCÊNCIA é o que vamos tendo cada vez mais, num abraço infeliz da política com este tipo de comunicação, em nome do povo e das audiências. Se, depois, a isso se juntar essa aliança espúria da comunicação e da política com o poder judicial teremos a receita perfeita para uma ruptura democrática. Lawfare. O caso brasileiro e o percurso do juiz Sérgio Moro podem servir de exemplo. E o que acaba por sobrar em tabloidismo vai faltar em ideias para a governação e para a construção do futuro, para a devolução à política da ética pública, para a mobilização política e comunicacional da cidadania, para o seu crescimento civilizacional e cultural, para a promoção da cidadania activa. Numa palavra, faltará uma concepção de política em linha com o que de melhor a democracia representativa ou deliberativa, tem para nos dar.

V.

ESTE TIPO DE COMUNICAÇÃO E DE POLÍTICA representa uma visão essencialmente instrumental de ambas: mero meio para aumentar as audiências ou o eleitorado e, em nome deles, intervir na sociedade. A política e a comunicação como instrumentos para alcançar um poder que, no fundo, acabará por tender a conceber-se como impolítico. Isto representa o triunfo do pior maquiavelismo, a negação da ética pública, mesmo quando se fala dela à exaustão e dela se serve para alcançar o poder, a política reduzida a pura retórica instrumental ao serviço da fria conquista do poder e não autogoverno da cidadania e instrumento para a transformação da sociedade. Esta política corresponde, pois, à fusão integral da comunicação e da política naquilo que ambas têm de pior, completando a fase em que a política adoptou as categorias, os tempos e a organização da comunicação mediática para atingir e conservar o poder. Há um exemplo muito elucidativo desta fusão e da forma mais avançada de política tablóide: Berlusconi, em 1993-1994. Ou seja, a captura integral da política pelo poder mediático, não só no plano da factualidade, mas também no plano da sua subordinação integral ao poder comunicacional, à sua organização, à sua lógica e à sua relação com a cidadania. Em palavras simples: Berlusconi geriu a política com as mesmas categorias com que geriu o seu império mediático, transferindo armas e bagagens da holdingtelevisiva para o aparelho do partido (incluídos os especialistas em sondagens sobre as audiências, por exemplo, o sondagista Gianni Pilo). Afinal, as audiências (espectadores e eleitores), neste sentido, correspondem-se quase integralmente, podendo-se sobrepor, até mesmo nos targets com que se trabalha (jovens – Italia Uno; reformados e domésticas – Retequattro; classe média – Canale 5). Houve até quem definisse o acesso de Berlusconi ao poder como um “golpe de Estado mediático” (Paul Virilio). Ou a política como continuação do poder mediático por outros meios. Apesar do crescimento da rede, a política clássica, sobretudo a que ainda continua metabolizada pelos partidos da alternância e pelo establishment, ainda continua de braço dado com o poder mediático, usando a rede com as mesmas categorias com que usa as velhas plataformas do broadcastig, fazendo jus ao seu próprio conceito de política puramente instrumental e de pura gestão do poder, como “governance”, como tecnogestão, como puro “management” ou gestão asséptica do poder, numa nova versão ideológica da política.

VI.

EM SÍNTESE, é possível afirmar que a evolução das relações entre política e comunicação levou, numa primeira fase, a uma progressiva adequação da política às categorias das comunicação, em particular, às da comunicação televisiva, e, numa segunda fase, à própria metabolização política das categorias da comunicação ao ponto de o género tablóide passar a ser transversal a ambas as esferas, lá onde se reduz a política a mera técnica retórica de captação de audiências para o espectáculo da política, em dois géneros que acabam por se confundir, convertendo a cidadania em mera audiência e a política em “Jogo das Partes”, para glosar o título de uma peça do grande Luigi Pirandello. A política não passa, neste caso, de mero marketing político, que agora, com a rede, ainda ganha mais substância participativa, sobretudo no chamado Marketing 4.0, de Philip Kotler.

Hoje, todavia, as coisas, com as redes sociais, estão mesmo a mudar, para o bem e para o mal, mas este é um outro e mais complexo discurso que, todavia, pode explicar muito bem a guerra sem quartel que os velhos poderes lançaram às redes sociais.

Jas@02-2023

Editor Web
António Moreira Prof. Adjunto no Instituto Politécnico de Santarém Escola Superior de Desporto de Rio Maior Doutorado em Ciências do Desporto - UTAD Presidente da Direcção da Sociedade Portuguesa de Medicina Chinesa Especialista em Medicina Tradicional Chinesa pelo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar - ICBAS da Universidade do Porto É Director do RMJORNAL.com
https://rmjornal.com

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