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PERGUNTEI AO VENTO

A prescrição criminal

Não é em vão que se diz do tempo que ele é um grande escultor. O decurso do tempo modifica modos de pensar e altera a perceção que vamos tendo das coisas e dos factos. Daí que ao Direito, enquanto regulador dos comportamentos sociais, ele não seja indiferente.

Com o decurso do tempo alteram-se teses doutrinárias e jurisprudenciais, extinguem-se medidas que num certo contexto faziam sentido, liberta-se a memória…

O Direito evolui com a passagem do tempo.

Acontecimentos passados mas recentemente divulgados trouxeram para a discussão pública a questão da prescrição de crimes, nomeadamente dos de natureza sexual envolvendo crianças e jovens.

Os avassaladores números de vítimas de crimes alegadamente perpetrados no seio da Igreja Católica, só recentemente conhecidos do público, levou a que, na ponderação entre a gravidade de atos desta natureza e o tempo que passa desde o abuso até à denúncia, se equacione uma modificação legal em matéria de prescrição do procedimento. A comprová-lo a demonstrada incapacidade das vítimas para a denúncia em tempo útil.

A passagem do tempo assume extrema relevância no âmbito da lei criminal. A mesma consagra prazos de prescrição do procedimento consoante a gravidade da pena aplicável a cada crime. A pena aplicável é sempre definida por lei e explica-se por razões de política criminal, pelo que aquilo que num dado momento histórico assume relevância, pode, noutro momento, perdê-la.

A preocupação com crianças e jovens é, na atualidade, substancialmente distinta daquela que se registava na primeira metade do Séc. XX, tendo surgido no ordenamento jurídico internacional e interno vários instrumentos legais destinados à proteção dos mesmos.

O atual Código Penal Português vem de 1982, tendo sofrido múltiplas alterações. Em matéria de prescrição do procedimento criminal considera que quinze anos é o maior lapso de tempo que acautela as exigências punitivas. Um lapso de tempo aplicável a crimes tidos como excecionalmente graves – os puníveis com pena de prisão superior a dez anos (entre os quais o homicídio), mas também alguns ditos de colarinho branco, entre outros.

A mais grave das penas aplicável ao abuso sexual de crianças é de dez anos, pressupondo cópula ou coito, anal ou oral. Nestes casos o prazo de prescrição é de dez anos, o mesmo acontecendo se o abuso sexual for de menor gravidade (punível com pena de prisão cujo máximo é de oito anos). A lei acautela, porém, a imprescritibilidade até ao momento em que o jovem ofendido perfaça 23 anos.

Com a instituição do mecanismo da prescrição do procedimento o Estado, enquanto titular do direito de ação criminal, como que renuncia ao mesmo, reconhecendo que passado um certo tempo o procedimento deixa de ser possível. A aplicação de uma pena criminal serve certas finalidades – retribuição e prevenção – e, com o decurso do tempo tais finalidades deixam de poder ser alcançadas porquanto se atinge um certo grau de esquecimento que leva a que não faça mais sentido chamar o indivíduo à responsabilidade.

Noticiou-se, no corrente mês, a aprovação de dois projetos de lei, um da autoria do Bloco de Esquerda, outro do PAN – Pessoas, Animais, Natureza, tendo como objetivo alargar o prazo prescricional aplicável aos crimes de abuso sexual de crianças até que a vítima complete trinta anos.

A medida, parecendo justificável, dada a natureza dos atos, e agradando, em geral, à opinião pública, impõe que se reflita sobre a respetiva eficácia em termos de resultados processuais e, bem assim, sobre o efeito da investigação sobre a própria vítima ao cabo de um tal lapso de tempo. Por outro lado, o sistema penal português assenta numa ideia de ressocialização, da utilidade da pena, princípios que dificilmente conviverão com um tão alargado prazo. Algo sobre que importa refletir!

Manuela Fialho
Manuela Fialho nasceu no Cartaxo, residindo desde a infância, em Rio Maior. Empenhada no movimento associativo, designadamente o regional onde integra os órgãos sociais de várias associações e participou na fundação e instalação de outras, vem, desde há alguns anos, colaborando com a imprensa local. É membro do Centro de Investigação Joaquim Veríssimo Serrão, ali integrando o Conselho de Redação das Revistas MÁTRIA XXI e MÁTRIA DIGITAL. Publica em revistas de cariz jurídico. Tem colaborado como conferencista e/ou docente com o Centro de Estudos Judiciários, com a JUTRA –Associação Luso Brasileira de Juristas do Trabalho, com a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e com a da Universidade Nova de Lisboa. É juíza desembargadora.

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