Gritos

O Grito

Os Gritos

Os gritos não serão mais altos, mas são indiscutivelmente mais. O sistema não está mais desatento, continua igual, porque não acompanhou o repto a que se propôs: respeitar a individualidade, lutar por ela, olhar de perto para as partes como partículas minúsculas que juntas formam o todo, num mundo já tão diferente. Os gritos. Um tema para olhar de frente, mas que ensurdece, cega, dói pela crueza da verdade, e que por isso silenciamos…

O Homem ousou evoluir para patamares que o desorganizaram.

Decidiu que deveria inventar uma máquina mais rápida e mais potente do que ele.

Decidiu conectar o mundo que por ora, aberto ao bem mas também aberto ao mal, sucumbe devagarinho por falta de armas para lutar com a consequência. Consequência. Um bom termo para um escrutínio detalhado, minucioso. No microscópio do comportamento a objectiva está turva, doente, embaciada pela grandeza do que o Homem construiu, ignorante dos vazios internos que deixa, numa deriva que nos empurra em correntes fracas, mas que mais parecem uma tormenta de um cabo bojador.

E agora para onde seguiremos, se o leito do rio que nos governa mais parece uma encruzilhada de trilhos sem norte e sem direcção? Para onde caminharemos, se na hora de escolher nos confundem os objectivos grandiosos da imagem, da imensidão externa, em detrimento do ser e da imensidão interna? O que escolheremos, se de um lado nos acenam com o que podemos construir a pulso, para erguer uma espécie de fortaleza de ser-se humano, quando no outro nos abanam um lencinho levezinho de cores suaves, aparentemente serenas, rápidas na ascensão? Que faremos à pressa e ao vagar, confusos como nunca? Que faremos ao tempo que envelhece de cansaço? Onde encontraremos tudo o que nos falta?

A concepção enviesou algures no processo, parece-me. Se o encaixe do universo tivesse ousado ser mais perfeito, saberíamos que na senda da evolução pessoal deveríamos olhar para dentro. Sim, porque olhar para dentro não significa só dormir, como nos diziam os nossos avós na hora do sono. Significa também olhar para nós, mais acordados do que em qualquer outra tarefa de atenção. Se tivéssemos moderado, se tivéssemos prestado atenção à importância destes olhares, talvez agora não nos sentíssemos tão perdidos de nós próprios. Porque certamente teríamos encontrado algumas respostas em cada recanto do nosso interior, que nos poderiam transportar para serenidades mais efectivas, e menos dúvidas existenciais. Fizemos orelhas moucas, ouvidos de mercador. Era o mais fácil, o mais apetecível. Queríamos lá saber de trilhos complexos e sinuosos, doridos, exigentes. Queríamos lá confrontos danados e desgovernados, medonhos, encontros com medos e fragilidades, debruces sérios sobre o nosso lado lunar. Com assunção de falhas e de temores. A velocidade assim, à luz do disfarce, era de cruzeiro. E por isso decidimos seguir o embalo, e num ápice mais veloz do que o da luz julgamos que éramos os maiores de todos os maiores, o super de todos os Homens. Ganhamos afecto a esta visão construída, associada à supremacia da existência, e quase sem darmos por isso começamos a deixar cair as nossas virtudes.

Do alto alguém deve ter visto, arrisco dizer, foi sendo perceptível, demasiado barulhento para passar despercebido. Caíram honras, caiu trabalho, caiu introespecção e pensamento. Caiu dedicação e empenho, caiu paciência e tolerância,  caiu generosidade, humildade, respeito e liberdade. Era inversamente proporcional. À medida que se foram erguendo os muros do capitalismo  e do poder, foram minguando os valores  da dignidade humana.

A pior das consequências destas escolhas, é a perda dos sentidos associada ao ser humano. Mascarando o supérfluo de essencial e vice-versa, perdemos empatia, sintonia, capacidade de audição e visão. Perdemos afectos, perdemos tempo, perdemos histórias reais. Entregamos, na mais profunda das ignorâncias, a existência do nosso Eu, a mais profunda das grandezas, a um constructo abstracto e fraudulento. E hoje, curiosamente, mantemos o caminho da distracção. Continuamos a esquecer a nossa satisfação pessoal e global, para podermos procurar o que mostrar à sociedade, e insistimos deslocar o índice da felicidade, a maior das nossas responsabilidades, para o patamar público da análise externa.

Depois, ignorantes dos meandros, ficamos indignados com os juízos de valor. Expressamos descontentamento com alguma difamação, à qual nós mesmos entregamos as nossas próprias histórias. E julgamos com isto que estamos a ser melhores, maiores, e claro, mais perfeitos, só porque nos revoltamos com as crónicas de maldizer da praça pública.

Tudo isto enquanto gritamos por algo que não sabemos o que é, e que só descobriremos se pararmos, quietos, a olhar para nós e para a nossa realidade: seres finitos, pequenos, cuja única responsabilidade deveria ser o encontro consigo próprio, e o respeito universal pelo outro e pela natureza.  

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Carla Raposo Ferreira, é Psicóloga e escreve às Segundas-feiras no Rio Maior Jornal.

Carla Raposo Ferreira
Psicóloga, Terapeuta do luto. Exerce clínica privada nos distritos de Santarém e Leiria.