Que Natal Temos? Que Natal Queremos
Portugal – Início de Novembro
As cidades enchem-se de luz, de brilho, de cor, de movimento. “Vida”, dizem. As lojas usam as suas montras como caleidoscópios que multiplicam infinitamente a luz e a cor em remoinhos embriagantes. Passamos. Paramos. Aceitamos o convite para este festim que nos alucina e deixamo-nos subjugar por aquela beleza. “Glamour”, chamam-lhe.
Os modelos cintilantes que cobrem corpos impossíveis estão ali, à nossa frente, em fotos enganadoras, desafiando-nos para objetivos inatingíveis. “Foco”, aconselham-nos. Durante os próximos dois meses, castigaremos o corpo com exercício a mais e comida a menos, com trabalho a mais e salário a menos para competir com os nossos pares na festa, no jantar, na gala. E vencemos. “Sucesso”, gritamos.
Compraremos aos nossos filhos brinquedos que os iniciem neste modelo.
Compraremos roupas cujos logótipos têm letras traduzíveis por números.
Compraremos inúmeras inutilidades para os mais amigos e para os menos amigos.
Compraremos até para o amigo secreto, nem dando conta do absurdo da expressão.
Mediremos também a amizade e o amor em números, com a certeza de que só essa linguagem é conhecida por todos.
Portugal – uns dias antes do Natal
Esta época é tão cansativa! Ainda faltam tantas compras, esta azáfama de loja em loja, de jantar em jantar, mais o ginásio e as horas extra para esticar o salário, os miúdos de férias do Natal, (havia de haver escola sempre!), a organização da consoada para tanta gente, o almoço de Natal e tudo tão caro, os supermercados com filas intermináveis, o/a funcionário/a da caixa a perguntar “quer contribuir para a missão X e ajudar Y?” e nós sim, é Natal e está tudo a olhar, não fica bem dizer que não, mesmo que já seja a enésima vez que dizemos que sim, e o salário que não estica, e o euromilhões que não me calha, e os miúdos que estão impossíveis de aturar, e a casa que está num caos, e os sacos do supermercado que são demasiado pesados, e o lugar de estacionamento que não se encontra (o que é que toda esta gente anda a fazer na rua?!) , e Portugal que perdeu com Marrocos, e o gato que deitou a árvore de Natal ao chão outra vez, e esta chuva que não abranda, e o Natal que nunca mais passa, e eu já só queria poder descansar embrulhado/a numa manta polar, beber um chocolate quente e ver a “Emily in Paris”, isso sim, é que é glamour até dizer chega.
Acredito que qualquer um de nós se identifica com algum detalhe dos quadros anteriores. E não, não é nenhuma conclusão resultante de um longo trabalho científico que me leva a acreditar nisto, mas apenas a minha experiência pessoal e a constatação de que, ao longo das últimas décadas, a época natalícia se tem transformado sub-repticiamente numa armadilha inescapável, com a nossa conivência e colaboração.
Lembramo-nos, principalmente os/as mais velhos/as, de Natais com contornos mais humanos e menos consumistas. Juntar a família, principalmente em volta de uma mesa mais farta e variada, presentear as crianças com coisas de utilidade indiscutível mais um ou outro extra, no caso de terem feito por merecer.
Ainda não tínhamos sido capturados e aprisionados por esta ideia obsessiva de consumo, ainda não tínhamos entrado nesta competição desenfreada com os nossos pares, ainda não tínhamos concentrado toda a nossa atenção e energia em nós próprios, na nossa aparência e nos sinais que projetamos para o exterior, o que nos tira a clareza e a capacidade de ver o que de facto importa.
Confiamos em objetos que compramos para obtermos o estatuto e a distinção que desejamos, sem compreendermos que são elas que nos empurram para uma normalização em tudo contrária à natureza humana.
Aceitamos, lisonjeados, que os que nos pagam nos chamem colaboradores/as em vez de trabalhadores/as, como se o eufemismo não escondesse, no mínimo, a invasão e apropriação dos nossos tempos de lazer e descanso.
Apelam-nos ao “espírito de Natal” (outro eufemismo), mostram-nos imagens de guerra e pobreza e fazem-nos verter lágrimas de emoção.
Convocam-nos para comprar e contribuir, para comprar e ajudar, para comprar e dar. E sentimo-nos quase ricos, quase bons, quase solidários.
Depois, vemos que aquelas imagens não são connosco, que não podemos fazer nada, limpamos as lágrimas, saímos para as últimas compras e continuamos a preparar o nosso quase Natal.
Será esta a melhor maneira de celebrar o nascimento de um humanista?
Emília Barroso é Professora e Cidadã de pleno direito, natural do Porto, reside em Alcobaça, e deu aulas a muitos alunos no externato cooperativo da Benedita, vai passa a colaborar com o RMJornal.
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