A Violência tem limites? ou a Violência não tem limites?
A mim, mulher, pouco me importa se alguém se levantar e der um estalo em defesa da minha honra ou da minha fraqueza, significa-me pouco mais do que nada, a não ser o reforço da minha consciência de que sou fisicamente menor do que um homem.
Intriga-me o valor alheio que encontrei num gesto violento, impulsivo, que a ser executado por alguém desconhecido certamente teria direito a intervenção por agressão, pelo menos se cometido assim, em directo, de forma inequívoca e comprovada.
Tratando-se de uma figura pública premiada, passou a representar uma espécie de momento de glória, sem censura, o que deixou inserido numa aceitação global, que muitos aplaudem sob os desígnios do limite do humor, ou sob a defesa do homem à sua legítima esposa, como se fosse um acto de amor. Por razões diversas, já privei com a violência bem de perto, e desengane-se quem a julga direccionada, criteriosa, carregadinha de bom senso e de limites, associada aos afectos apenas na hora certa, quando alguém ousa ofender quem amamos.
Os limites são um território interno, estrutural, edificado ao longo do crescimento e que nos tabela a existência mais recôndita do ser. São o balanço entre a emoção e a razão, a sabedoria da mediação, o confronto da maior agrura com o maior juízo.
É certo que existem situações extremas que nos podem devolver completos à mais pura das irracionalidades, e em que a nossa estrutura e o nosso limite integral e basilar, pode efectivamente sucumbir à afronta, mas não foi de todo o que o se passou neste episódio.
O episódio, de mau gosto, foi isso mesmo, uma brincadeira, de mau gosto. Duvidosa, eventualmente exagerada, pertença a um humor agressivo, talvez até, paradoxalmente, sem graça. Merecia talvez uma sala séria, um semblante carregado que colocasse o humorista no seu devido lugar. Mas não, mereceu um estalo. Um estalo que pode de facto ser interpretado de mil e uma formas, mas que em termos comportamentais não deixa margem a dúvidas: foi um acto de violência física.
Pergunto a quem defendeu questões tão simples, como: o que fazer ao jovem que massacra outro jovem com actos continuados e de gozo, num profundo desrespeito pela sua individualidade? O que fazer ao colega de trabalho, que de uma ou de outra maneira abusa da nossa boa vontade, num claro abuso, persistente e cansativo? O que fazer ao homem que passa por uma jovem na rua, e mesmo sabendo ser crime, arrisca um piropo mais abusado, claramente machista e evitável, como se ela fosse um objecto?
E o que fazer ainda ao professor dos nossos filhos, que privilegia os filhos dos amigos, efectuando assim um clara injustiça tendenciosa? Todos estes exemplos, e tantos outros, cabem no domínio da indignação. Cabem na zanga, na irreverência, na possibilidade de desacato. Pergunto-me, genuinamente pergunto-me, o que fez tanta gente julgar este acto como um gesto positivo, quase dando a entender a possibilidade de ser um remédio para situações como as que atrás referi.
A violência é um assunto muito sério. Consiste usualmente em manifestações exageradas perante o sucedido, e torna a vida de quem está perto numa ânsia permanente. Felizmente já avançamos, já se reduziu muito a utilização da mesma na educação, e no dia a dia de tantas pessoas. Batermos as palmas a um episódio destes é surreal e perigoso. Will Smith não ditou o limite ao outro, ultrapassou um limite dele próprio. Uma vergonha.
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Carla Raposo Ferreira, é Psicóloga e escreve às Segundas-feiras no Rio Maior Jornal.