Juventude Inquieta
Sinto com frequência alguma agitação quando ouço falar dos jovens, conversas muitas vezes com carga fortemente negativa e eventualmente negacionista (é sempre bom utilizarmos as palavras da moda). Como se fosse uma idade que os “notáveis” saltaram sem mazelas, que atravessaram sem borbulhas e sem dúvidas existenciais, sem braços que cresceram demais e sem vozes que se ouviram ao longe, mesmo quando se queria apenas o murmúrio de meia dúzia de palavras (mansas, discretas). Na verdade sinto que muitas pessoas não sabem muito bem o que fazer com eles, ou melhor, com elas próprias perante eles, agora que ficou para trás a obediência cega da autoridade, e a personalidade se constrói mundo afora, longe das origens e das raízes. Tão mais inteira, tão mais impertinente (ninguém aprecia desobediências e insurgências, convenhamos).
É claro, não é fácil para quem cresce, mas também não é fácil para quem vê crescer. Não é fácil para quem vai porque o mundo fora do colo pode ser desafiante e curioso, mas ainda assim contém lugares desconhecidos, assustadores, longe da zona de conforto e da protecção da casa dos pais. Mas eu diria até que para quem fica a dor é ainda maior. E é maior porque de repente a falácia da propriedade morre por evidência, num ápice, à força como num parto, e é preciso desconstruí-la e integrá-la em forma de uma outra verdade: somos livres uns dos outros, vejam bem. E por isso, quase sem darmos por isso, o jovem expulsa-se a ele próprio do ninho, embalado numa enxurrada de projectos, acolhido por uma espécie de coragem que lhe nasce numa madrugada inquieta, entre um sonho e um receio, entre uma paixão e um ódio. Quem fica, sob a distância do tempo, já se esqueceu. Já não se lembra de como o mundo se desenhava a pincel negro, esfumado, confuso, distante. Já não se lembra das dúvidas, dos medos, do futuro incerto, da enormidade de decisões consubstanciadas em nadas que parecem tudo. Já não se recorda do poder da ambição que nem sempre move montanhas, nem da força de um amor, mais frágil do que uma gota de água ( a intensidade dos paradoxos é uma coisa incalculável. E formidável.). E como já não se lembra, e como já encontrou um caminho que lhe permitiu prosseguir com direcção, já não faz a mais pálida ideia do que é esse percurso clandestino, com vozes que cutucam aos ouvidos coisas sem nexo, com pensamentos indefinidos, múltiplas fracturas expostas no coração, inúmeros desgostos, muitas angústias, pouca credibilidade, descobertas sem certeza, muitas certezas sem razão.
E por tudo isto, quando os olho a deambular em bandos com pouco rumo, consigo perfeitamente sintonizar com eles e recuperar inúmeros pensamentos que senti sem acolhimento, sem escutas e sem entendimento de terceiros. Porque a generalidade dos adultos de outrora eram como os adultos de hoje, esquecidos, adormecidos, impacientes, preocupados com coisas de adultos, pouco complacentes com turbilhões desnorteados, fúrias a desoras e manifestações de independência fraudulenta, válida apenas para a liberdade de ser e de contrariar.
Lembro-me do excesso de pessoas que se traduziam em poucas, quando a meio do estio a cidade ficava deserta. Lembro-me dos professores cheios de saber e de ordem que me olhavam de um patamar superior, mesmo sem estrado, crentes de que apenas a sabedoria dos dados concretos fazia as pessoas grandes. Lembro-me da autoridade de alguns adultos, que se erguiam em rezas na mesma medida em que pecavam a olhos vistos, sem dó, sem consciência, sem piedade. Lembro-me da solidão da faculdade, do vazio das horas, da inconstância, dos risos que num ápice viravam lágrimas, e do desconforto de um corpo demasiado estranho para ser meu. Lembro-me ainda da pressa de crescer para fugir dali, da ânsia da maioridade que nunca mais chegava, da vontade de viver e do receio de perder.
Quando os olho despenteados, escondidos nos capuzes das sweats da moda, sei exactamente do que se escondem e imagino, muitas vezes, o que procuram, antagónicos, como só eles sabem ser: escondem-se da critica alheia, procuram um lugar (por muito que pareça que se escondem do mundo, e que procuram confusão).
Na realidade estão no auge do desapego ( a mais bela das idades, só eles não sabem disso). Estão no limbo entre o parecer e o ser, entre a identificação e a independência, entre a aceitação e o confronto, entre o grito e a serenidade. É um novo nascimento para todos, tão doloroso em frentes como o primeiro, mas desta feita em queda livre, sem médicos, sem hospitais, sem enfermeiros, sem colo, sem epidurais.
“O que não provoca minha morte faz com que eu fique mais forte.”Friedrich Nietzsche
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