Deleito-me com a abrangência da minha imaginação.
Vivo entregue às minhas vontades sem qualquer tipo de limite, como se no meu íntimo tudo me fosse permitido sem censuras e sem contenções. Não foi sempre assim.
Houve tempos em que o meu cérebro insistia em controlar-me os pensamentos com a mesma mestria com que a religião peia os seus súbditos. Deixava que o empecilho do que é certo me norteasse os impulsos, me castrasse as ideias, me impedisse as catarses, e embaraçava, com as minhas próprias correntes, tudo quanto fosse politicamente incorrecto (nunca duvidem do poder da sociedade).
Cheguei à conclusão de que talvez não fosse o melhor para mim mesma. Que talvez não fosse sensato a agonia com que ficava perante quotidianos enxovalhados por impulsos alheios de malvadez, é que vocês não sabem, mas o meu corpo sempre se pautou por manifestações fortes, e honrosas somatizações. Nunca gostou de se fixar em meras dorzitas parcas de personalidade, em ligeiros esgares de cansaço, em pequenas evidências de desconfortos diversos. Se ele fosse assim, de brandos achaques, estava eu bem.
Ia norteando na medida certa as diabruras da alma, doseava paliativos ligeiros, disfarçava as nódoas negras que teimassem em me nascer na pele, e seguia sem que eu própria percebesse o impacto da circunstância. Mas não, sou de excessos, valeu-me a sorte de o perceber cedo, ainda me lembro do exacto momento em que aconteceu. Estava eu na escola preparatória, quando um grupo de miúdas me ameaçou de morte. A causa era fácil, eu, menina de aldeia a tentar vingar na cidade, fazia de tudo para ser aceite pelos professores.
Não me incomodavam muito os colegas. De alguma forma sabia, que mais cedo ou mais tarde, as amizades viriam. Eu queria mesmo era passar à classe docente uma ideia de eficiência, de dedicação, de obediência e de atenção.
Nada de muito verdadeiro, portanto. Acontece que no meu redor nem toda a gente se predispunha a esta veneração, sendo que existiam inúmeros distratores que prendiam a miudagem a outros interesses bem mais interessantes. Por conseguinte, a minha conduta deferente atribulava as demandas da malta, que se via a braços com a minha impertinência de aluna exemplar, que escondia os diabretes dentro dos sapatinhos de verniz com fivela, e dos lacinhos do cabelo.
Normalmente, eu não morria de medo perante as ameaças. Deveria depreender que ninguém me iria matar por tão parca causa, ou poderia ser que confiasse nos anjos da guarda que a minha avó me atribuía sempre que rezava por mim. O que ali me prendia os passos era a zanga, que feroz, como só ela sabe ser, me carcomia as entranhas com uma força desesperada. Eu tentava expurgá-la, é um facto, mas na prática nunca conseguia expressar o que sentia de forma prestável o suficiente para me recompor.
Não raras vezes, chegava a casa e retorcia-me com fúrias que me faziam encolher na cama. Tenho memória de que chegava a necessitar de dormir para deixar que o meu corpo engolisse pelo sono as agruras do dia, como se os meus sonhos fossem os tais fiéis guardiões que me levavam para longe todas as injustiças que eu sentia. Tenho memória de no dia seguinte olhar as “agressoras” com uma voracidade que eu reprimia pelas regras da sociedade, era feio chamar nomes aos outros, ainda que os mesmos apenas brotassem e se desenvolvessem no meu interior, sem nunca conhecerem a luz do dia: morriam sempre no silêncio da minha boca, em cada intervalo que passava, escola acima, escola abaixo.
Um dia disse para mim mesma que eu era merecedora de algo bem mais brando. Que o meu destino não poderia ser definhar por dentro com as regras que as velhinhas me ensinavam com ditados populares, nas soleiras das portas: águas passadas não movem moinhos, a voz do povo é a voz de Deus, quem espera sempre alcança, caiu na rede é peixe, cachorro que ladra, não morde. Porque na realidade as águas passadas continuavam a atormentar as minhas entranhas, e bem vistas as coisas, os cachorros que ladravam, também me mordiam.
Mantive a essência da interioridade. Não me sujeito a verbalizações sonoras, quando muito permito-me um entredentes discreto, escondido por uma mão cautelosa, que por vezes uso para sacudir o cabelo. Ninguém percebe. Mas na maioria das vezes, é cá dentro que interpreto. Até porque quando sou injusta (e sou-o muitas vezes), posso fechar-me sobre mim própria e recuperar a sanidade, entretanto sufocada pela emoção. Nunca fui apologista de correr riscos desnecessários.
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Carla Raposo Ferreira, é Psicóloga e escreve às Segundas-feiras no Rio Maior Jornal.