Guerra conjugal
O meu marido é muito melhor do que eu a ultrapassar uma crise conjugal. Chega sempre muito feliz a casa, mesmo quando na manhã anterior me chamou de rameira, de sem vergonha, de gorda, barriguda e feia.
Tem razão, tem toda a razão, eu compreendo-o perfeitamente. Um homem digno desse nome não tem de aturar os caprichos de uma mulher, são sempre um aborrecimento. Ainda para mais os caprichos de uma pseudo-senhora, com tamanha crosta associada. Interna e externa.
Um homem digno desse nome quer uma mulher alta e esbelta, loira, vistosa, de preferência de poucas conversas perturbadoras. Deve dizer que sim a quase tudo, ou, se contestar, deve fazê-lo na medida certa, para que no final de contas o ajuste seja conduzido na medida exacta da elegância.
Deve juntar no mesmo corpo dependência suficiente e independência quanto baste, deve amá-lo muito e ter um sorriso sempre aberto, mesmo quando no calor da briga saia um incontrolável és uma cabra, já se sabe que o impulso é inimigo das palavras doces. Continuo a compreendê-lo perfeitamente, se há coisa que irrita um homem são conversas sobre a razão, o que, convenhamos, agravadas pela escolha da hora errada, dão direito legítimo a um vernáculo desenvergonhado, solto depressa e bem.
Hoje pela tardinha, logo após uma crise moderada, ainda o sol aquecia o vidro do carro e o meu corpo flácido e cansado, informou-me que vai recorrer aos serviços de uma prostituta. Não está satisfeito com os meus préstimos, devo-lhe mais assistência, e não importa se a mesma se presta entre um beijo e uma carícia, ou entre uma ofensa e uma ausência. Há mulheres que parecem esquecer disto, mas é um erro de uma ferocidade violenta.
Nunca deveremos esquecer que os nossos maridos necessitam da nossa subserviência como do pão para a boca, e que se assim não entendermos, correremos o risco de procurarem profissionais do assunto, só por questões higiénicas, sem que nada se coloque em questão no romance do casamento.
É um facto, comprovadíssimo pela história, das nossas mães, das nossas avós, de muitas mulheres e de muitos homens. Ainda assim olhei-o nos olhos, pois fiquei ligeiramente perturbada, confesso. Tentei que me explicasse melhor a razão, mas logo me calei perante os seus mais sérios argumentos; a assistência é diminuta.
Quando há, não é satisfatória, e claro que não é compreensível qualquer tipo de afastamento da minha parte, apenas e só porque na noite anterior saiu de casa de rompante, mandando-me encostar no vizinho da loja do lado, enquanto tenho rabo para isso. Era só uma pequena guerra conjugal, vale o que vale, só eu pareço não compreender, afirma. E portanto hoje, quando regressou pela manhã, eu deveria ter sucumbido às suas vontades, pois só assim seria uma esposa digna desse nome, e totalmente merecedora de fidelidade conjugal.
Olhei pelo vidro e estava um dia lindo lá fora. As famílias passeavam os cães, os gatos espreguiçavam-se nas ervas, e os pombos defecavam felizes no vidro do nosso carro. Eu, devagarinho, ajeitei o meu corpo velho no banco, mas quando abro o espelho reparo que o batom vermelho que eu tinha colocado com jeito e paciência, tinha sido comido pela nossa conversa sobre mulheres e cama. Que valente maçada. Ele mantinha-se irredutível, quieto, tão convicto na sua escolha acertad.
O meu marido tem razão, e eu continuo a compreende-lo perfeitamente, ainda para mais, porque com muito jeitinho, avisou-me do que pretendia fazer. Sou uma verdadeira privilegiada, nunca serei uma mulher enganada. É claro que retoquei o batom vermelho, tão nosso amigo quando a idade já não nos eleva. É ele e os livrinhos de auto-ajuda, que ensinam como ninguém truques para sermos felizes.
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Carla Raposo Ferreira, é Psicóloga e escreve às Segundas-feiras no Rio Maior Jornal.