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Freiria

A Freiria e o Rio Maior

O Lugar da Freiria nos Anos Sessenta do Séc. Passado

Escrever sobre a vivência das pessoas nos anos sessenta e setenta, do século passado, no lugar de Freiria de Rio Maior, é para mim um momento de boas e sadias recordações. Evidenciando como é natural, apenas algumas notas, vistas e vividas por um jovem adolescente.

Naquela época, os moradores do lugar de Freiria, tinham uma forte ligação ao Rio Maior, dada a sua proximidade e cujas nascentes ficam a menos de um Km. Havia muitos peixes naquele tempo em todo o rio, foi também no rio que toda a criançada aprendia a nadar e, no verão, íamos lá tomar banho. As férias escolares duravam três meses e nós aproveitávamos bem esse tempo.

Quem tinha forno em casa, ou na casa de algum familiar, ia ao moinho de água do ti Chícharo, no rio Maior, que por motivos de doença, o levou para uma cama por muitos anos, então, o moleiro passou a ser o ti Manel dos Pardais, que trabalhava num moinho mais próximo da nascente do rio, mas estava em pior estado de conservação e achou por melhor ir para o outro moinho com outras condições. Ia-se lá comprar a farinha, ou fazer a troca de cereais por farinha para fazer o pão.

Em nossa casa isso acontecia, a minha mãe fazia o pão que nos durava para uma semana. Era também no rio que as mulheres iam lavar a roupa e, aproveitavam para ter a conversa em dia (havia dias que corria muito mal). Não existia água canalizada nem energia elétrica na maioria das habitações, recorríamos a um chafariz público para ir buscar água para os consumos na nossa casa, a iluminação era feita com os candeeiros a petróleo.

À noite, e principalmente nos períodos de inverno, juntávamo-nos junto à lareira para nos aquecermos e ouvirmos dos mais velhos, as mais diversas estórias. Também adorava ir à noite a casa da minha tia Matilde, o marido dela, o tio Vicente, que chegou a ser moleiro, e depois mais tarde, foi funcionário do Estado, na profissão de cantoneiro. Tinha orgulho no trabalho feito no seu cantão (zona da estrada que estava sobre sua responsabilidade).

Embelezava as bermas da estrada com roseiras de várias cores, até ao domingo ia regar algumas mais frágeis. Ainda nos dias de hoje, vejo roseiras plantadas por ele nessas zonas de estrada, e já passaram mais de cinquenta anos. A sua voz forte e vibrante amplificava e valorizava as estórias e episódios que nos contava da sua vida, o que me proporcionava umas valentes gargalhadas.

Nos finais da década de sessenta do século XX, então, começou-se a ter água e energia na grande maioria das casas. As famílias na sua generalidade eram compostas por um agregado familiar bastante numeroso, comparativamente aos tempos deste século XXI. Eu, e os meus amigos, passávamos muito tempo na rua nas brincadeiras, os miúdos juntavam-se em grandes grupos, as portas das nossas casas estavam abertas ou simplesmente encostadas. A nossa imaginação na procura de brincadeiras era fértil, brinquedos de compra, eram praticamente inexistentes, os nossos pais não tinham a possibilidade de nos comprar, mas isso, não era problema para nós. Na casa ao lado da minha, a nossa vizinha a que chamávamos ti Belmira do Beira, tinha onze filhos, era uma santa mulher, com uma paciência enorme para nos aturar.

Como não tínhamos televisão nas nossas casas, íamos ver televisão a uma taberna, a taberna do ti Joaquim Mitra, que também tinha uma cerâmica. A sua esposa, a Dona Laura, era uma senhora também bastante tolerante connosco. Em frente ficava o chafariz onde íamos buscar água, era um local apropriado para os rapazes verem e namoriscaram as raparigas.

Quando estava para começar algum filme, lá começávamos nós – “ó menina Laura ligue a televisão vai começar o filme – ela respondia – ainda é cedo e vai gastar luz”. O problema é que as televisões daquele tempo eram a válvulas, e demoravam uma eternidade a fazer o aquecimento até aparecer a imagem.

A sala da televisão era ao lado da taberna, havia uns bancos corridos e nós disputávamos o banco da frente, pois a emoção de ver o Tarzam , Bonanza e as outras séries de coboiada emitidas naquela época, faziam-nos sonhar com grandes aventuras. Ainda uma particularidade. No sótão da casa onde víamos a televisão, vivia lá um senhor, o Relvas, também lhe chamavam o Cristo, era solteiro e pouco se sabia das suas origens. Era cavador e trabalhava à jorna para muitas pessoas. Lembro-me que se fartava-se de bater no soalho por causa do barulho que nós fazíamos e assim não podia dormir. Outra particularidade dele, era, dizer-nos sobre o aparelho televisivo – “isso que estão para aí a ver é tudo mentira, não pode estar ninguém lá dentro dessa coisa a falar” – a nossa argumentação a explicar como era o funcionamento não servia de nada – quando assistimos à emissão da chegada do homem à Lua, então o ti Relvas, dizia: “são todos uns vigaristas essa caixa só diz mentiras, nunca o homem consegue chegar à Lua”.

Era também nesta taberna que o correio era entregue aos habitantes do lugar. A ti Maria, uma senhora viúva com cinco filhos para criar, recebia uma avença dos Correios para ir buscar o correio e distribuir lá na taberna – era o carteiro daquela época – as pessoas já sabiam mais ou menos a hora em que ela chegava e esperavam pelo correio. A correspondência não entregue ficava à guarda da Dona Laura e era entregue posteriormente aos destinatários.

Estas são apenas algumas notas que deixo neste texto. Retratar estes assuntos não é saudosismo, mas é, dar a conhecer aos mais jovens que a vida está sempre em constante mutação.

Rio Maior, 16 de dezembro de 2021

O chafariz público da Freiria

João Teodoro Miguel escreve às quintas feiras no Rio Maior Jornal

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João Teodoro Miguel
João Teodoro Miguel, é natural de Rio Maior. Foi empresário até 2008. Teve uma breve passagem pela política como independente. É Mestre em Economia, Políticas e Culturas. Pós-graduado em Gestão e Organização Industrial. Diplomado no Programa Avançado de Economia e Gestão de Empresas de Serviços de Águas. Foi investigador na Universidade Lusófona. Atualmente é reformado.

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