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Esqueletos no Armário

Quem não tem esqueletos no armário?

Apresenta-se sempre com ar de poucos amigos. Sabe como ninguém onde se encontra a linha, ténue, da educação, e por conseguinte nunca passa por ela, a não ser em situações extremas e francamente pontuais.

Escolhe com perícia em quem deve depositar alguma da sua amabilidade. Pessoas que de alguma forma sejam influentes, bem falantes, bem apessoadas, bem na vida e quem sabe bem na morte ( nunca deveremos arriscar pensar que sabemos de que linhas se cose o outro lado da existência).

Normalmente chega direita, rápida e eficientemente. Nunca se esquece da ordem do dia nem de nenhuma que necessite de ser executada, seja ela de pagamento, seja de despacho, seja de qualquer outra natureza de expediente.

A entidade patronal deposita nela toda a confiança, uma vez que ao longo de vários anos tem dado provas concretas da sua competência, inicialmente colocada à prova, como a de qualquer outra pessoa que assuma a função de secretária naquela sociedade.

Foi sempre perfeita, mas um destes dias falhou. Ninguém sabe ao certo o que lhe aconteceu, eventualmente nem ela própria saberá, sabemos apenas que naquele dia chegou à hora do costume, colocou a chave na porta, desactivou o alarme, entrou no seu local de trabalho e ligou os seus dispositivos.

Enquanto entravam em funcionamento despiu o casaco, colocou-o no bengaleiro, passou um batom nos lábios, um creme nas mãos, alisou o cabelo com as mãos e esperou que finalizassem as operações do início do dia. Mal conseguiu entrar no sistema olhou a agenda, percepcionou o que tinha para fazer no dia, e dedicou-se à minuciosa execução das suas tarefas.

Pagamentos, cartas diversas a pedido dos advogados, telefonemas, e outros assuntos que se justificassem. Invariavelmente, durante esse dia, nunca sorriu. Nunca falou para além da conta, nunca estabeleceu qualquer contacto dispensável, nunca foi até à máquina do café onde as suas colegas costumam falar sobre a vida, sobre os filhos, sobre a roupa que não seca na humidade do Inverno, ou sobre o marido que se ausenta vezes de mais, ninguém sabe porquê, ninguém sabe para quê. Não lhe apraz aquele tipo de conversa mundana, ligeiramente alcoviteira, e por isso mesmo prefere manter-se distante.

Como ia dizendo, ninguém sabe ao certo o que lhe aconteceu naquele dia. As colegas sentiram-na sempre igual, submersa no silêncio de sempre. Os patrões encontraram-na prestável, rápida, dedicada, apenas se aperceberam de uma ligeira inércia no início do dia, nada de mais, eventualmente uma pequena distracção pensaram eles, que jamais denunciaria o que sucedeu a seguir.

Deveriam ser umas quatro da tarde quando ela detectou o erro. Primeiro julgou-se enganada do engano, se me compreendem, pensou estar a ver mal aquele lapso, vindo dela, sempre tão discreta, tão pronta e eficiente. Mas o que seria aquilo, o que a terá levado a tamanha falha? Teria sido a filha que não dormiu bem de noite, ou teria sido a preocupação com a mãe, que na véspera tinha caído desamparada de uma cadeira, caindo redonda no chão, arriscada a partir uma costela? Nenhum destes factores lhe pareceu de monta suficiente para o terrível acontecimento, que tinha efectivamente acabado de acontecer.

Num ápice, tentou resolvê-lo sem que ninguém se apercebesse que ele tinha acontecido. Primeiro tentou entrar na caixa de email do destinatário para apagar a terrível prova do engano. Depressa percebeu a impossibilidade e mais rápido ainda compreendeu que não havia forma de reparação possível, e que a única coisa que poderia esperar daquele infortúnio, era que a esposa do seu chefe não se lembrasse das iniciais de seu nome, presumíveis reveladoras do remetente.

Se assim fosse, apenas ele seria alvo de escrutínio sério. Apenas ele teria de se justificar perante a inquisição, e apenas ele seria confrontado com este deslize ocorrido dias antes, numa tarde chuvosa, nos arquivos, enquanto ambos mantinham o seu ar compenetrado, eficiente. Pensou por momentos em dizer-lhe, para que o pobre não fosse apanhado desprevenido. Pensou por rápidos segundos em descer da sua elevação, em reconhecer que era gente, em assumir que por engano, distração, acto falhado, ou qualquer outro motivo (mais ou menos propositado), tinha enviado para a mulher traída, uma prova da traição. Não aconteceu.

Achou por bem fingir que nada tinha acontecido, e aguardar que ele aparecesse no dia seguinte com um pedido de esclarecimento, ao qual ela responderia com a mesma devoção de sempre, pedindo desculpas, oferecendo-se para reparar o engano, tudo dentro da mais discreta actuação, o território mais confortável para si, muito mais seguro do que uma conversa prévia que jamais conseguiria controlar, dada a intensidade da reacção. Ficou segura da sua decisão. Seria muito mais confortável esta posição, embora menos justa e menos cúmplice, o que de resto, nem causa alí questão de maior, uma vez que  o caso tinha ficado concluído, não tinha precedentes nem continuidade, foi um rombo de espírito, um afrontamento, um momento em que sabe-se lá porquê, num mero segundo, desceu da seriedade e esboçou um insólito sorriso.

Continuou o seu dia com o perfil seráfico habitual. Não foi fácil, mas não julguem que foi pelo engano. Não foi fácil porque atrás do sucedido vieram artilharias de fantasmas que se alinharam em armas infinitas e lhe trouxeram o passado e o presente, uma carga imensa que a desnorteia sempre que a invasão acontece.

Ela já sabia, ela já sabia que a única forma de existir condigna é guardar-se para si, pois lá não erra, lá não falha, lá não sucumbe ao mero ocaso da ocasião. E se por azar acontecer, é lá que morre o infortúnio, solitário, sem passar pelo crivo alheio ou pelo julgamento implacável dos olhos da sociedade e da tia Celeste. A tia Celeste, que a bem da verdade me parece ser a razão desta história. sem que a mesma o saiba, sem que ela sequer suspeite do alto dos seus setenta anos, envoltos em lides domésticas infindáveis, associadas ao serviço à terra e à paróquia, ao senhor padre e a todas as pessoas que careçam de cuidados maiores. Foi ela que lhe ensinou a não sorrir para além do desejável, sob pena de deixar de ser perfeita para passar a ser pessoa.

E o mundo tem tantas pessoas, que sobre elas, não há qualquer história ( ou as histórias serão sobre elas? Agora de repente fiquei confusa…). No dia seguinte correu tudo dentro de uma certa normalidade. O chefe entrou à hora do costume, um pouco mais circunspecto. Ela também. Não será correcto dizer que vinha mais sorridente, mas detectava-se uma ligeira leveza, um respirar mais tranquilo, mais espontâneo, sensível apenas a quem estivesse muito atento. 

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Carla Raposo Ferreira, é Psicóloga e escreve às Segundas-feiras no Rio Maior Jornal.

Carla Raposo Ferreira
Psicóloga, Terapeuta do luto. Exerce clínica privada nos distritos de Santarém e Leiria.