Conversando com Emil Cioran – Por João de Almeida Santos
LEMBRAM-SE do que disse Nietzsche acerca dos ideais, a que ele chamava ídolos (“idola”), em Ecce Homo? Pois Emil Cioran (1911-1995) não lhe fica atrás. Vejam o que ele diz na sua bela e disruptiva obra de 1949, Précis de Décomposition (Cioran, 2022):
“Basta-me ouvir alguém falar de ideal, de futuro, de filosofia, ouvi-lo dizer ‘nós’ com uma inflexão de segurança, invocar ‘os outros’, e considerar-se o intérprete deles, para que o considere meu inimigo” (Cioran, 2022: 13; redondo meu).
IDEAIS, SALVAÇÃO E FILOSOFIA
CLARO, lembramo-nos logo de Nietzsche, da “mentira do ideal”, da “maldição sobre a realidade”, que ele sempre quis abater como se isso fosse a missão da sua vida. Mas também nos lembramos de certos políticos e da proclamação retórica da grandiosidade dos ideais que supostamente guiam a sua (falhada) acção. Ou dos padres: “Faz o que eu digo, não o que eu faço. No que digo estão os ideais e a salvação das almas, no que faço está a reles realidade, a vida, a tentação, o vício, o pecado, a que, pobre mortal, também eu não sou imune”. Sim, sim, pode ser, mas a perspectiva de Cioran é bem mais profunda, vai bem mais lá ao fundo da existência humana. A sua é uma posição ontológica, uma visão comprometida de quem fala da impura realidade (“só a impureza é sinal de realidade” – 2022: 32) e não foge para as nuvens brancas e celestiais dos ideais ou da fé. E também não foge, insisto, já não digo para retórica política, mas para a própria filosofia, esse reino da decadência anunciada. Diz ele que “só começamos a viver depois da filosofia, sobre as suas ruínas” (2022: 63). Sobre as suas ruínas, sim: o caos mundano e frágil dos sentidos e das erráticas pulsões atrás das quais corre a poesia. “Além do mais,” diz, “a filosofia – inquietude impessoal, refúgio junto de ideias anémicas – é o recurso de todos aqueles que se esquivam à exuberância corruptora da vida” (2022: 62). Se não erro, é esse mesmo “triunfante” racionalismo filosófico que Nietzsche também execrava. Essa anemia que é preciso combater com a poesia para que o sangue se revitalize – no poeta e em quem o acompanha para, com ele, melhor se afundar na vida e nos seus pântanos sensoriais. Nos ideais, dizem por aí, encontramos a salvação. E os ideais, além de celestiais, também habitam a casa da filosofia, esse reino da anemia. Pois é, mas estes são mundos pouco humanos, ou mesmo inumanos, porque a vida é infelicidade e “todos os seres humanos são infelizes”, embora poucos saibam que o são (2022: 41). Diz ele:
“O erro de todas as doutrinas da salvação é suprimir a poesia, atmosfera do inacabado. O poeta trair-se-ia se aspirasse a salvar-se: a salvação é a morte do canto, a negação da arte e do espírito” (2022: 40).
O ESPÍRITO
BOM, a negação do espírito talvez não, caro Cioran, pois ele, o espírito, é “amante das vertigens puras, é inimigo das intensidades”. É liquefacção. É vida em estado gasoso. Mas as intensidades são vitais, pulsionais, alimentam a vida e a poesia. Na verdade, elas pertencem mais ao reino da alma do que ao reino do espírito: “Cobrir com normas a impureza de todos os sentimentos e de todas as sensações é uma procura de elegância necessária ao espírito, ao pé do qual a alma – essa hiena patética – é somente profunda e sinistra” (2022: 40). É por isso que o espírito “em si mesmo não pode deixar de ser superficial” e se mostra incapaz de exprimir a melancolia, “que emana das nossas vísceras”, se não for depurada daquilo que a liga à fragilidade dos sentidos. Essa melancolia que se mostra incurável e que é alimento do poeta. O que acontece, verdadeiramente, é, pois, uma autêntica degradação de cima para baixo, com o espírito a liquefazer as intensidades, a alma, a vida, os sentidos, as sensações, o impuro, numa palavra, a realidade. Melhor ainda: “L’Esprit est le grand profiteur des défaites de la chair. Il s’enrichit à ses dépens, la saccage, exulte à ses misères; il vit de banditisme” (1952: 6). Oportunista, saqueador, bandido – são estes os louvores que Cioran concede ao espírito, aquele que se aproveita das derrotas da carne, que o mesmo é dizer da vida. É por isso que, por ser espiritual, “a salvação acaba com tudo; e acaba connosco”. “Quem é que, uma vez salvo, ousa considerar-se ainda vivo?”, diz Cioran (2022: 39-40). E se calhar tem razão: uma vez salvo já nada haverá para fazer. Até porque haveria sempre o risco de voltar a cair na vida, na corrupção dos sentidos, na carne, na decomposição. Voltar a perder-se nesse mundo pecaminoso da vida. Felizmente que há a poesia para nos resgatar, sim, mas sem acabar connosco, porque, depois de “chafurdar” na impureza e na dor, conserva o sofrimento no baú da memória sensitiva para o trazer à consciência quando for preciso, quando a dor mais apertar. A poesia não sai daí, não se eleva ao reino celestial dos ideais, mas somente ao da beleza, que é sensível, mesmo quando é universal. Universal subjectivo, diria o Kant da “Crítica do Juízo”. Assim é que é. Se Cioran não vai lá muito à bola com a filosofia, o mesmo não acontece com a poesia, com a arte. Porque ela verdadeiramente não tem ponto de chegada e por isso anda sempre por ali, como eterna transeunte em perda, até porque “o nosso capital de infelicidade” se mantém “intacto ao longo das épocas” (2022: 190): “é impossível haver ponto de chegada para a vida de um poeta. É de tudo quanto não empreendeu, de todos os instantes alimentados pelo inacessível, que lhe vem o poder” (2022: 118).
O NASCIMENTO DA POESIA
É VERDADE. A poesia nasce de um sentimento de perda. Foi para suprir a vida que não tiveram que foram inventadas as biografias dos poetas” (2022: 119). Que não são como esses imbecis que a herdaram, a vida, mas não sabem o que ela é. E que, quando julgam saber, se perdem nessa inutilidade que é a filosofia. Querem a prova irrefutável? Pois “quase todos os filósofos acabaram bem”. Salvaram-se. Aqui está. Mas alguma razão haverá para isso – resistiram ao apelo dionisíaco da vida, à eterna errância, ao caos criativo. São todos exclusivamente apolíneos, poderia ter dito Nietzsche. E fugiram para o reino dos assépticos conceitos e dos ideais, para poderem inalar o agradável “perfume do espírito”. Pois. Mas o Nietzsche afundou-se. Sim, mas isso aconteceu, não porque era filósofo, mas porque era “poeta e visionário: expiou os seus êxtases e não os seus raciocínios”. E Sócrates? O seu fim “não teve nada de trágico”, diz Cioran. Foi simplesmente “um mal-entendido”. Estão a ver? A verdade é que “é sempre impunemente que se é filósofo: um ofício sem destino” (2022: 62-63), a não ser o da salvação. A linha de demarcação entre o lado de lá e o lado de cá está, pois, bem definida. E a poesia, que está do lado de cá, tem lugar de destaque pelo que representa. Veja-se o que ele diz num artigo de Janeiro de 1943 sobre o poeta romeno Mihail Eminesco:
“La quantité de résistance que la vie oppose à la soif de vivre détermine la qualité du souffle poétique” (Cioran, 1943).
A dinâmica entre a vida e a sede de viver a determinar a qualidade do sopro, da “allure”, da inspiração poética. Mesmo quando Cioran não a refere, percebe-se que ela, a poesia, está sempre presente na sua mente. Que ela anda por ali. Aliás, até poderia dizer que este livro é poesia em forma de prosa. Ou, utilizando as palavras de Cristina Campo, Cioran traduz “na aridez impessoal da prosa” as “fulgurantes visões” dos poetas (Cioran: 1943). É só ler o “Précis” para verificar a justeza desta afirmação.Ou os “Syllogismes de l’Amertume”.
O MILAGRE NEGATIVO
CIORAN não é homem de meias medidas. Atira-se ao real e navega por lá, sem barco e sem remos, à deriva, pelas suas ruas escuras, pelos seus “bas-fonds”, como os existencialistas, também, por isso, conhecidos como “rats des caves”. E até diria que também para ele “l’enfer c’est les autres”, todos, tudo e até ele próprio, outro de si. O diabo anda à solta, por aí, a alimentar-se de realidade. E não é “aborrecido” e “tão mediocremente pitoresco” como Deus. Está cheio de vida e os homens reconhecem-se demasiado nele para o celebrarem em altares (2023: 32-33). Ele é daqui, não é lá do alto, e não é portador de ideais de salvação, de azuis infinitos onde possamos navegar com a nossa alma em paz, salvos e… mortos. Não. O inferno é aqui. E é por isso que a poesia é importante, porque nasce desse lado mais subterrâneo da vida, menos luminoso, mas em fogo ardente, como o inferno. Nasce da dor, do sofrimento, do sentimento de perda. O “poeta é vítima de uma ardente decomposição”, no aprazível inferno da vida. Ele pode ser trânsfuga, até pode, mas na sua fuga tem de levar “consigo a sua infelicidade”, para não se perder. Porque, digamo-lo sem tibiezas, se a infelicidade é um nosso património incancelável já “a alegria não é um sentimento poético” (2022: 119). Bem pelo contrário, ele, o poeta, anda por aí a verter “lágrimas, vergonhas, êxtases – e, sobretudo, queixumes” (2022: 120). Um infeliz. “Só existimos quando sofremos”, diz Cioran. E “sofrer é aceitar a invasão das maleitas (…) como um milagre negativo” (2022: 40-41). Aqui está, a poesia é um milagre negativo. Negativo, sim, mas milagre. É neste negativo – filha da dor – que reside a sua própria beleza, mas também a sua necessidade neste imenso reino da contingência que é a vida.
DIGAM O QUE DISSEREM…
PODEM, pois, vir com conversas mais ou menos cultas, com a exibição de improváveis intertextualidades, com teorias abstractas, académicas e revistas por pares acerca da poesia, podem mesmo levá-la para o Pantheon, que de nada serve se não a forem procurar lá, nas vielas estreitas e escuras da vida, nos desencontros desejados ou inventados, nas silhuetas fugidias que se esgueiram, como neblina levada pelo vento, nas esquinas da sofrida existência, na infelicidade aprazível dos que a sabem cantar e a cantam para evitar que almas piedosas venham salvá-los. A poesia salva, sim, mas salva da salvação, porque se mantém ancorada na melancolia do viver incompleto e inacabado. É assim que ela redime, através da beleza, cantando o contingente fungível da multiplicidade caótica da vida. A poesia evita sempre ser trânsfuga da realidade, procura resistir ao apelo dos ideais e à busca de salvação e, por isso, é tão minimalista, tão musical e, não tendo pretensões de fugir da realidade, também não tem pretensões de dizer algo sobre ela. Nem sequer de a “corrigir”, como diz num dos aforismos de “Syllogismes de l’Amertume” (1952: 8). Simplesmente porque quer ser ela própria realidade, confundir-se com ela, casar-se com ela, não cortar o cordão umbilical no momento (nem nunca) do seu próprio nascimento, simplesmente para que possa existir. O poeta, nela, quer ser mais infeliz, mais encantadoramente infeliz do que na infelicidade que lhe bateu à porta quando teve de nascer, fruto das circunstâncias, fruto do fracasso.
O FRACASSO, O SUCESSO E A POESIA
Radicalizando talvez demasiado, se é que se pode radicalizar sem ser excessivo, Cioran, no meu entendimento, coloca-se no centro de uma interrogação primordial sobre a poesia. Ela surge como exigência, como resposta à experiência originária da impossibilidade, do fracasso, da perda. Mas é resposta, não fuga para o reino da formas puras, dos conceitos redondos, dos ideais salvíficos. E também não é salvação da impureza da vida, do caos existencial, do pecado da carne. Nada disto, precisamente porque não é fuga, mas vivo confronto com a rugosidade da contingência, imersão no que há de mais impuro na existência humana. Falho, naturalmente, a vida e fracasso – então, ainda a vou falhar mais com os meus meios, precisamente através de uma poética do fracasso.. Só que o faço com uma alegre melancolia, com o prazer de estar a navegar no caos, na turbulência, sentindo o prazer dos poços de ar existenciais. Um prazer infeliz. E, ainda por cima, o faço agitando a vida com o frenesim induzido pela melodia e pela toada poética com que vou ao confronto. E dá-se o venturoso caso de os meios de que disponho serem esteticamente performativos, poderosos, capazes de mobilizar outros para um confronto que é uma convivência infeliz. Na verdade, do que se trata é de um corpo-a-corpo, de uma tentativa de nos substituirmos à falhada contingência com outra contingência mais convincente, mais bela e até contagiante. Acabamos por acrescentar fracasso ao fracasso, só que este é mais íntimo, menos rugoso e até mais alegre e quente. Mais belo, portanto – a poética do fracasso.
Nesta frase fica tudo dito, porque não há poética do sucesso. Seria um oxímoro. Esses, os que se julgam prenhes de sucesso, não percebem que isso é uma ilusão. O Vinicius não mandou embora o passarinho e a poesia só porque julgava ter tido sucesso no amor? Sucesso no amor é insucesso na poesia. Mas logo outras janelas se abriram ao passarinho e ao seu canto. O que é isso do sucesso? É mais rápido a ruir do que a construir. Castelo de areia, tem as fundações instáveis. Só que não parece, de tão “perfeita” ser a construção. Um dia, lá mais para a frente, o homem de sucesso dirá: consegui tudo. Depois, mais clarividente, dirá ainda: quanto mais conseguia mais me faltava. E agora, que o ciclo se fechou, dirá: falta-me tudo. Alguns acabam por se render à poesia para se resgatarem da caverna e compreender que o que faltou será a medida da sua exigência e da sua própria existência (poética): o sentimento de perda e de fracasso é a medida de todas as coisas. E põem mãos à obra para, quais falhados ou vencidos da vida, tentarem a redenção… sem saírem dela. Oh, mas isso será tão doloroso como é a vida autêntica e, pior, nunca mais poderão olhá-la que não seja na óptica do fracasso, para não sucumbirem poeticamente. Rater la vie c’est mon destin, diria o poeta. Voilà.
ALGUNS AFORISMOS
Traduzo alguns aforismos de Cioran (de Syllogismes de l’Amertume, de 1952) que reforçam o sentido geral do seu pensamento e ajudam a melhor compreender a estratégia do meu artigo sobre a “Poética do Fracasso”, neste diálogo com o escritor romeno.
1. “Falhar a prória vida é aceder à poesia – sem o suporte do talento”; “O ‘talento’é o meio mais seguro de tudo falsificar, de desfigurarar coisas e de se enganar a si próprio”; (“Rater sa vie, c’est accéder à la poésie — sans le support du talent”; “Le « talent» est le moyen le plus sûr de fausser tout, de défigurer les choses et de se tromper sur soi”); (1952: 3 e 6).
2. “Uma poesia digna deste nome começa pela experiência da fatalidade. Só os maus poetas são livres”;“Une poésie digne de ce nom commence par l’expérience de la fatalité. Il n’y a que les mauvais poètes qui soient libres”); (1952:10).
3. “Quando estamos a mil léguas da poesia, ainda participamos nela por essa súbita necessidade de gritar – último grau do lirismo” (“Quand nous sommes à mille lieues de la poésie, nous y participons encore par ce besoin subit de hurler, — dernier stade du lyrisme”); (1952: 4).
4. “Com Baudelaire, a fisiologia entrou na poesia; com Nietzsche na filosofia: Para eles, as perturbações dos órgãos foram elevadas a canto e a conceito. Proscritos da saúde, tinham o dever de garantir uma carreira à doença”. (“Avec Baudelaire, la physiologie est entrée dans la poésie; avec Nietzsche dans la philosophie. Par eux, les troubles des organes furent élevés au chant et au concept. Proscrits de la santé, il leur incombait d’assurer une carrière à la maladie”); (1952: 5).
5. “O público precipita-se sobre os autores considerados ‘humanos’; ele sabe que, deles, nada tem a temer: parados, como ele, a meio do caminho, eles propor-lhe-ão um acordo com o Impossível, uma visão coerente do Caos”; (“Le public se précipite sur les auteurs dits « humains »; il sait qu’il n’a rien à en craindre : arrêtés comme lui à mi-chemin, ils lui proposeront un arrangement avec l’Impossible, une vision cohérente du Chaos”); (1952: 6).
6. “Nada de salvação, a não ser na imitação do silêncio. Mas a nossa loquacidade é pré-natal. Raça de tagarelas, de espermatozóides palavrosos, nós estamos quimicamente ligados à Palavra”;(“Point de salut, sinon dans l’imitation du silence. Mais notre loquacité est prénatale. Race de phraseurs, de spermatozoïdes verbeux, nous sommes chimiquement liés au Mot”); (1952: 6).
7. “A poesia (…) tinha ido mais longe do que eu na negação, ela fez-me perder até as minhas incertezas”; (“La Poésie (…) était allée plus avant que moi dans la négation, elle me fit perdre jusqu’à mes incertitudes…”); (1952: 7).
8. “Mais do que ser um erro de fundo, a vida é uma falta de gosto que nem a morte nem mesmo a poesia conseguem corrigir”; (“Avant d’être une erreur de fond, la vie est une faute de goût que la mort ni même la poésie ne parviennent à corriger”); (1952: 8).
9. “Quem receia perder a sua melancolia, quem tem medo de se curar dela, com que alívio ele constata que os seus temores não têm fundamento, que ela é incurável”; (“Qui tremble pour sa mélancolie, qui a peur d’en guérir, avec quel soulagement il constate que ses craintes sont mal fondées, qu’elle est incurable!“); (1952: 56).
REFERÊNCIAS
CIORAN, E. (2022). Breviário de Decomposição. Lisboa: Edições 70.
CIORAN, E. (1952). Syllogismes de l’Amertume. In https://www.rodoni.ch/cioran/8338994-Cioran-Syllogismes-de-lamertume.pdf
CIORAN, E. (1943). “Mihail Eminesco”. In https://www.pangea.news/cioran-un-testo-inedito-in-italia-sulla- poesia/ – com uma introdução de Cristina Campo. Jas@02-2023