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Depois do Natal

E Depois do Natal

É 26 de Dezembro. Depois do Natal

O Natal viveu-se em festa, as pessoas juntaram-se em família e esperou-se que a perfeição fizesse a sua parte, e se distribuisse em harmonia pelo cansaço.

Na minha família não há excepções à regra. Planeou-se a consoada, distribuíram-se as tarefas e os desejos, e aguardou-se um balanço positivo que inundasse os corpos de sossego, nada de novo. 

Mas por vezes, eu própria reservo para mim mesma o direito de ficar de fora, e com alguma frequência revivo o passado, num encarar profundamente analítico do meu trajecto.

Paro em momentos criteriosos da minha história, e bato sempre de frente com tudo aquilo que encontro, como por exemplo esta beleza de revistas ambicionada por toda a gente, como se dela dependesse o novo ano que se avizinha. É curiosa a forma como dependemos dela nas nossas vidas. Eu própria, neste Natal, deparei-me com ela em imensas quadras festivas da minha existência, uma espécie de esforço que anulou, anos a fio, o meu ser.

Era notório que eu me construía socialmente, muito mais do que hoje em dia. Era notória a forma como eu saltava das minhas crenças para as crenças globais de quem estava sentado na minha mesa, lado a lado ou frente a frente, como  se a minha leitura interior não fosse nada, perante o peso da instituição.

Nesta entrega rezei a quem não tinha fé, agradei a quem não tinha afectos, comprei presentes para quem eu não amava. Vesti-me num rigor no qual eu não me identificava, e claro, proferi palavras que não queria. Na sequência, sacrifiquei pessoas que não mereciam à minha disposição sombria. Anulei expectativas pessoais em nome da regra e esqueci-me de ser quem eu era, nublada por ditames externos a tudo quanto norteava a minha existência.

Não sei se alguma vez na vida poderei contabilizar o desperdício ao qual me sujeitei, em nome do que esperavam de mim. Não sei se terei alcance para abranger o que perdi, calcular o que não alcancei, projectar a quantidade de emoções que engoli em cada ceia, sempre à espera do lugar que nunca poderia alcançar. Porque simplesmente não há lugares, há conquistas que se revelam a cada dia, incessantes e incompletas, em cada amanhecer. 

Hoje eu sei que em muitos destes Natais, não era eu que estava ali, era uma espécie de actriz, adornada com um manto invisível mas grotesco, que eu própria não encarava. Hoje, eventualmente ainda longe do meu verdadeiro Eu, sinto-me num caminho mais genuíno, menos perfeito. É mais fácil para mim abandonar o colectivo por mim própria, sem me sentir a maior egoísta do mundo. É com mais rapidez que me escuto, que procuro o que me faz sentido, que me insiro na minha própria vida sem ambicionar os finais felizes da história do lado. É com muito mais satisfação que olho para as minhas dúvidas, muito mais importantes do que as minhas eventuais certezas. E é ainda com uma enorme curiosidade que acolho este meu trajecto ambíguo, desnorteado, inundado de lugares que não conheço. Apetece-me mergulhar neles, procurar-lhe o cheiro mais íntimo, envolver-me com o meu próprio inconsciente e trair o mundo, eventualmente o meu maior grito de liberdade.

E contra tudo o que faz sentido, talvez seja esta consciência humilde de imperfeição, esta caverna de incertezas e este abandono da instituição, a melhor prenda que o Natal me entrega nas minhas meias, a cada dia 26 de Dezembro, de manhã cedo. Quando o mundo ainda dorme, tão sossegado.

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Carla Raposo Ferreira, é Psicóloga e escreve às Segundas-feiras no Rio Maior Jornal.

Carla Raposo Ferreira
Psicóloga, Terapeuta do luto. Exerce clínica privada nos distritos de Santarém e Leiria.