Do Dia da Mulher ao Dia da Liberdade
“O Homem é o Homem e a sua circunstância” Ortega y Gasset
Fui adolescente nos anos 70 do século XX e esse facto é indissociável da maneira como vejo o mundo e o meu país, como me vejo e me digo. Se os anos 60 tinham iniciado a Revolução Social, à qual nós, portugueses, assistimos de longe e de modo difuso, a década seguinte, marcada pela Revolução de Abril, tornou possível um conjunto de conquistas que viriam a determinar uma profunda alteração nas relações sociais em Portugal.
Quando “a maré alta da liberdade passou por aqui”, em abril de 1974, encontrava-me eu, com todos os meus eus de privilegiada num país em tons de cinza, a um pequeno passo do ensino superior. Eu, cidadã urbana, classe média, filha única; eu, estudante de liceu, com pendor para Línguas, Literatura, Ciências Humanas; eu, feminista, mais em palavras do que em atos; eu, contra um regime que me via apenas como aliada na manutenção da ideologia dominante “Deus, Pátria e Família”, embora me concedesse alguns favores, se patrocinados por um poder masculino; eu, contra a guerra colonial, que me levava os primos e os amigos, às vezes para sempre; eu, contra a indignidade da miséria imposta; eu, contra a repressão das vozes livres; eu, contra a violência da tortura e do medo; eu e a minha circunstância, mulher-antes-de-abril. Porém, outros eus de mulheres-antes-de-abril não tinham outra perspetiva de vida senão a de fazer parte do desenho social tão sabiamente projetado pelos seus arquitetos: o seu lugar era no fundo da pirâmide social e elas sabiam-no. Fora-lhes esculpido na matriz identitária à nascença. Eram os eus do trabalho pesado desde tenra idade, os eus da solidão deixada pela emigração dos homens com fome e sem esperança, os eus da ignorância, do medo, do abandono. Em Portugal, pior do que nascer pobre era nascer pobre e mulher.
E, de repente, abril fez nascer a esperança no Homem Novo. O fim de uma ditadura de quase cinco séculos, a conquista da liberdade de expressão, o fim da polícia política, a libertação dos presos políticos, o direito a exercer a cidadania de uma forma sistemática e de lutar contra todas as formas de discriminação e opressão contam-se entre as alterações com repercussão imediata na vida dos cidadãos. “A paz, o pão, habitação, saúde, educação…” A poesia estava na rua!
E as mulheres? As mulheres teriam – e têm – batalhas maiores e mais prolongadas.
O direito à autodeterminação, à educação, ao divórcio, à interrupção voluntária da gravidez constituíram marcos fundamentais na alteração do papel social da mulher.
O discurso feminista ressurgiu em Portugal e, numa altura em que o acesso de todos ao ensino já era uma realidade, recentrou a sua luta contra o papel da Escola na reprodução das desigualdades e estereótipos sexuais numa sociedade historicamente patriarcal e discriminadora das mulheres. Posteriormente, a igualdade de oportunidades e, mais recentemente, a questão da subrepresentação das mulheres em cargos de topo tem vindo a ser cada vez mais discutida, numa altura em que as mulheres se impõem pelo seu número e pela sua competência em praticamente todos os níveis e áreas do sistema de ensino.
As últimas quase cinco décadas foram um desafio constante, no que diz respeito à condição das mulheres, bastando referir que, em Portugal, o emprego feminino apresenta valores muito elevados para todos os níveis de escolarização, idade e situação familiar. A emancipação económica e o consequente empoderamento, foram, na minha opinião, a principal conquista das mulheres depois de abril. No entanto, a entrada das mulheres no mercado de trabalho não foi acompanhada pela entrada dos homens no mundo das tarefas relativas à casa e à família, fazendo com que as mulheres tenham de acumular um elevado número de horas de trabalho, com o correspondente desgaste físico e psíquico. Dir-me-ão que estamos a melhorar. Sim, estamos. Porém, num país em que se estima que a paridade salarial só seja atingida em 2051, em que, vezes demais, as “razões” dos violadores se sobrepõem ao crime que praticaram, em que a discriminação e o assédio em contexto laboral ainda são vistos como normais, e em que, apenas num ano (2022), 24 mulheres foram assassinadas pelos seus companheiros, há um longo e árduo caminho a percorrer. As mentalidades, dizem os entendidos, demoram seis gerações a alterar. Fui professora mais de quatro décadas. Não tenho a certeza de ter contribuído para essa mudança, mas, mesmo assim, não queria “desviver” um único dia dessa grande ilusão.
E não, não precisamos de flores e chocolates no tão romantizado e fantasiado Dia da Mulher. Precisamos, sim, é de mais Homens e Mulheres de abril. Todos os dias.
Emília Barroso é Professora e Cidadã de pleno direito, natural do Porto, reside em Alcobaça, e deu aulas a muitos alunos no externato cooperativo da Benedita, colabora com o RMJornal.
Se gosta deste texto partilhe-o nas redes sociais,
Se quer uma imprensa livre ajude o RMJornal fazendo uma assinatura