Já perdi imensas horas a pensar sobre este assunto. Tudo porque na minha cabeça não se desenham palavras escorreitas, sem borrões, claras, cristalinas que nem a água. O meu primeiro contacto com um sentimento estranho que faz nascer coisas na barriga ( dizem borboletas, por mim prefiro formigas, quem me conhece sabe o quanto me assustam os lepidópteros), foi na figura dos adultos.
Encontrava-o nos gestos da minha avó, uma linda senhora da aldeia que morria de amor por um lindo senhor, seu marido. Ela, filha de gente bem apessoada, cedo saiu da escola para se dedicar a bordar e a zelar a casa, era a vida que sobrava para as mulheres. O seu marido, meu avô, vivia do negócio da resina, e durante anos passeou-se por entre terras e pinhais, ora sozinho ora acompanhado de alguma figura feminina. Ela desconfiava, mas era persistente.
Rezam as lendas que chegou a visualizar alguns actos desajustados por entre a fechadura de uma porta, atestando visualmente aquilo que já sabia, mas jamais diria. Para quê dizer? Para colocar em causa o amor da sua vida? Para correr o risco da solidão, numa era em que os casamentos se construíam entre famílias, e que no caso de falha deixavam as senhoras entregues à sua sorte, ou melhor, ao seu azar? Sem meios, sem rodeios, sem norte?
Na rádio do quarto do meu avô o leitor de cassetes tocava incessantemente Amália Rodrigues, uma senhora que aprendi a amar desde cedo, e a imitar esganiçada ao espelho, enfeitada com as pérolas da minha avó. O meu avô batia-me as palmas deitado na cama, enquanto de olhos fechados sonharia com o trajecto do dia seguinte, que se iniciava invariavelmente com a escolha da boina e da gravata a condizer, tudo como mandava o figurino e a vaidade.
Enquanto isso a minha avó preparava o banho, o pequeno almoço, engraxava-lhe os sapatos e ordenava o dia da casa. Não raras vezes eu ficava aos cuidados da minha bisavó. Nesses dias a minha avó sentia-se então uma esposa, enquanto se enfeitava com as suas melhores roupas e se podia sentar na carrinha de caixa aberta em direcção ao Juncal, terra de prósperos negócios. E foi este o primeiro amor sobre o qual me debrucei, não tendo chegado a conclusão nenhuma que se preze.
Depois deste lembro-me de outro. Uma senhora, bela e sorridente, que se perdeu de amores por um jovem marinheiro. O jovem presenteava-a com muitos agrados. Trazia de longe diamantes, perfumes, cigarros e outros vícios caros que serviam de brilho e de disfarce para as discussões intermináveis, com direito a nomes impróprios e muitas lágrimas. Nada daquilo durou muito tempo, e um dia o noivo desapareceu num entardecer, deixando a casa que construíam despida, em tijolo, expondo o abandono aos olhos do mundo.
O mundo é curioso, respira histórias de amor que se vivem nos corpos alheios. Alimenta-se muitas vezes dessas quezílias, dos filhos, das conquistas, das traições. Anseia por notícias de alcova, nomes trocados, segredos obscuros, tudo quanto na vida alheia cause dano, desconforto, enalteça a nossa natureza pouco fiel e claramente egocêntrica. Quase arrisco dizer que por vezes nos esquecemos da grandiosidade que pode ser o interior das nossas vivências, tal a ânsia com que bebemos a desgraça alheia, em prejuízo das nossas próprias vitórias afectivas (nestas alturas, e por muito que analise e até compreenda alguns fundamentos, coloco sempre em causa a nossa inteligência).
Mas dizia eu que os meus contactos foram sendo pouco convincentes na magia disto tudo. Foram sendo ambivalentes, confusos, de muitas dádivas unilaterais e de pouco caminho comum. A páginas tantas lembro-me de concluir heroicamente: o casamento e as relações são um produto de duas (ou mais) pessoas, que vivem perto ou na mesma casa.
Essas pessoas unem-se por partilhas de funcionalidade e responsabilidades de quotidiano, enquanto no seu eu interior constroem uma realidade paralela, onde existem realmente como são. Lá, nesse terreno interior, vivem uma existência alternativa, muito mais grandiosa em termos de investimento emocional. É lá que se apaixonam, é lá que dão vida aos sonhos, aos desejos, ao que não é moralmente correcto, e a tudo quanto fuja ao esperado pela sociedade.
Numa ou noutra vez estas pessoas que estão numa relação podem partilhar com o outro algum laivo mais interno, algum grito, algum receio, mas isto só acontece em alinhamentos favoráveis de astros e de constelações, susceptíveis eventualmente a movimentos celestes, pouco frequentes.
Quando tudo corre bem, vão avançando vida afora, vão manobrando esta canoa clandestina pelas correntes tortuosas do próprio breu, vão-se desviando de pedras, de cabos, sabe-se lá de que tormentas, sempre na ambição da esperança. Quando tudo corre mal, tudo se desmorona. A falha fica a olho nu, e de aí em diante estamos na praça pública, no centro, na forca, no banco onde um ligeiro pontapé nos mata o ego, a construção social, a pompa. Uma vergonha que não queremos, e que nos desorganiza ao ponto de nos permitir subjugar os nossos sentires mais nobres, ao que acabo de descrever.
Há excepções, como em qualquer regra. Mas é a tal magia, reserva-se só para alguns.
Outras crónicas de Carla Raposo Ferreira