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Do Amor e da Guerra

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Do Amor e da Guerra

O casal da casa de cima dedica-se a alvoradas prematuras, recheadas de incrementos de corpo e de alma.

Ainda não descobri ao certo se o assunto pretende ser do domínio da alcova, saindo porém sorrateiro por entre as frestas da porta e pela levíssima camada de parede, ou se pelo contrário reclama um grau de assistência audível no quarteirão, quem sabe se para atestar a veracidade dos momentos (a validação é uma necessidade quase tão urgente como todas as outras).

O que é certo é que a guerra conjugal e a harmonia nupcial se fazem sentir com frequência nas imediações, intercalando uma espécie de cadência muito consistente, demonstrando ao mundo que não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe.

Em ambas as circunstâncias é patente o grito, a agitação, a força dos ímpetos e a velocidade dos gestos. Diferem ligeiramente na dinâmica, que numas situações se situa na zanga, na desregulação, no palavrão e na afronta, para nas outras se colocar a um nível ligeiramente arredado, num flanco igualmente intenso, igualmente violento, igualmente entusiástico, mas supostamente com um final mais feliz. 

Não tenho nada contra quem goste de abrir ao mundo os seus ódios, os seus prazeres, as suas sensações. Sou totalmente complacente com a expressão de qualquer emoção, e não sou nada dada a puritanismos que pretendam impedir algum controlo na animosidade, no ódio, na paixão e no amor, que por mim podem circular céu afora como um bailarico de verão, inundados de musicalidade quotidiana. Mas não posso deixar de reflectir sobre o conceito de relação dicotómica, patente em tantos lugares do mundo. 

Sinto sempre que são ligações que sobrevivem na subjugação, no domínio, na ausência de cumplicidade e de afectos, assentes numa espécie de frenesim que alimenta o delírio cerebral e o empurram para a continuação codependente. Nestes locais o guia assenta na toxicidade relacional, onde a ambivalência assume a função de ligar duas pessoas que pouco ou nada têm em comum, para que as mesmas consigam suportar a vulgaridade dos dias.

Nestas casas não há segurança, há agitação. Não há amor, há ímpetos, não há partilha, há lutas de poder. Não há respeito, há superioridade, agora tu, agora eu. Há ninhos replectos de nada, e egos cheios de tudo. Há derrotas e vitórias, há medo, desordem, rancor. Há actos de controlo que podem parecer de afecto, e há vinganças que se servem a frio, quentes pelo calor do momento e disfarçadas de desejo. Há um continuum ininterrupto de opostos, que estimulam a impaciência e a incerteza, e que impedem o surgimento de qualquer ligação  saudável e duradoura.

O resultado é a vitória da guerra em detrimento da paz, a assumpção da vanglória, da inconstância, da volatilidade, tudo pobres sucedâneos de um suposto apego. Um apego que nunca acontece, mas que nunca deixa de acontecer, e que se transforma na química diária da vida comum. 

Usualmente acontecem alternados nos dias, podendo ser semanas. Na certeza porém de que na sequência de um surgirá o outro, com uma previsibilidade quase tão certa como a do dia e da noite.

Com a mesma máscara do tempo de Outono, ora nublado, ora solarengo, caprichoso no objectivo, presumido na suposta intensidade, mas ainda muito morno, ainda muito sem graça.

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Carla Raposo Ferreira, é Psicóloga e escreve às Segundas-feiras no Rio Maior Jornal.

Carla Raposo Ferreira
Psicóloga, Terapeuta do luto. Exerce clínica privada nos distritos de Santarém e Leiria.

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