Defeitos de Profissão
Dizem por aí que ao fim de tantos anos eu já deveria compreender tudo, analisar quem passa a olho nu, permitir os insurgentes, a bem da verdade aceitar o mundo tal e qual ele é.
Deveria ajustar positivamente o possível, compreender a apaziguar as tentativas mais ofensivas que me dirijam, enfim, devido à minha profissão, devo dominar a tolerância. Olho para todos os que assim sentem e sorrio, ora em sorriso aberto ora disfarçado, depende do interlocutor e do meu humor de momento.
Hoje, passados alguns anos e muitas histórias, o que menos me apetece nas horas vagas, quando olho o mundo em geral, é analisá-lo, compreendê-lo, aceitá-lo ou perdoá-lo. Nas horas vagas preciso essencialmente de mim e de alguns dos meus, que podem ser pessoas, animais, livros ou lugares. Preciso de me esconder uns momentos das outras pessoas, necessito de me livrar dos anseios, das fúrias, das ansiedades e das derrotas.
Quando olho para um casal, nunca lhe procuro infidelidades, pontos comuns ou dispares, cumplicidades ou divergências, olho para eles como se fossem um vazio de conteúdo, sem qualquer tipo de inspiração. Quando olho para uma família não lhe analiso a mecânica, não lhe procuro passos em falso, não lhe perscruto gestos atribulados, para mim são um sossego existencial, no meio de um eventual turbilhão. Quando olho para um jovem não lhe capto a natureza, defensiva ou ofensiva, há-se ser uma, há-de ser a outra, eventualmente em dias alternados, para mim são um projecto de vida própria, deles próprios e de ninguém mais.
Quando me deparo com todos eles vejo só pessoas incluídas na paisagem, e passado um minuto já me esqueci delas, já se perderam juntamente com uma oliveira ou uma porta pintada, da qual nunca mais na vida lembrarei o número, a série, a voz ou a localização.
Isto é facilmente justificável, o meu único descanso é vazar o meu corpo dos sentires alheios, é eventualmente tentar entrar mais fundo nos meus, deixando de lado todas as outras dores e todos os outros males de medo ou amor. Nem que para isso permaneça com uma dívida constante, a quem para mim olha com a esperança da perfeição.
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Carla Raposo Ferreira, é Psicóloga e escreve às Segundas-feiras no Rio Maior Jornal.