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Compaixão

Da Compaixão

É na capacidade de sentir compaixão que poderemos regressar à nossa condição humana.

Não, não é minha intenção escrever um texto sobre a Quaresma, embora viesse a propósito. Desse período de quarenta dias, os quarenta dias de jejum de Jesus no deserto, que antecedem a mais importante celebração do cristianismo – a Páscoa – é meu propósito centrar-me apenas numa ideia primordial – a de reflexão.

Quer sejamos crentes ou não-crentes, conhecedores da Bíblia com profundidade ou mais superficialmente, grande parte de nós já ouviu algo sobre o simbolismo bíblico do número quarenta no que diz respeito à Quaresma, ao dilúvio de quarenta dias nos tempos de Noé, aos quarenta anos de êxodo do povo de Israel rumo à Terra Prometida, e a diversas outras passagens que fizeram parte da nossa educação em mensagens explícitas ou subliminares. Todas elas se edificam sobre os conceitos de privação e de provação, de frugalidade e de despojamento, de silêncio e de tempo, de afastamento do mundano e do acessório, de regresso ao essencial e de reencontro consigo próprio. Todos estes episódios nos transportam às ideias de expetativa e de renovação que resultarão da reflexão que formos capazes de fazer.

Há muitos anos, um aluno perguntou à antropóloga americana Margaret Mead, autora de importantes estudos sobre os comportamentos humanos em sociedades primitivas da Oceania, qual era, para ela, o primeiro vestígio da civilização humana. Perante a perplexidade do aluno, que estava à espera que a professora falasse de ferramentas ou processos para construir objetos, a resposta foi “um fémur com 15.000 anos encontrado numa escavação arqueológica. O fémur estivera fraturado, mas tinha cicatrizado. A cicatrização do maior osso do corpo humano, que se localiza entre a anca e o joelho, só foi possível porque aquela pessoa esteve imobilizada durante um grande período de tempo. Há 15.000 anos, alguém cuidou daquela pessoa, abrigou-a, alimentou-a, protegeu-a, acompanhou-a.” Na natureza, qualquer animal que parta uma perna está condenado, uma vez que não conseguirá caçar, se for um predador, nem conseguirá fugir, se for uma presa. Podemos concluir que, para Margaret Mead, o que carateriza a civilização humana e nos distingue enquanto humanos é a nossa capacidade de nos preocuparmos com os nossos semelhantes.

Chegados aqui, estamos todos aliviados porque, se é assim, todos nós somos humanos civilizados, uma vez que nos preocupamos com os que sofrem, contribuímos sempre que nos pedem para os mais carenciados, doamos o que nos sobra a quem precisa, etc., etc. Mas vamos um pouco mais além nesta reflexão. O nosso modo de vida não nos deixa muito tempo livre. Na verdade, quase sem nos apercebermos, somos recetáculos passivos de canais de distribuição de tudo o que pensamos necessitar. O conceito de hipermercado alargou-se a todo e qualquer produto e as tecnologias fizeram o mesmo com o pensamento e até com os sentimentos. Os programas de televisão são como um supermercado de ideias, entre as quais escolhemos as que tornamos nossas. Também nos mostram quem são os maus e os bons, de modo a podermos ter pena de uns e vituperar outros. Não temos tempo para conversar cara a cara, trocar opiniões resultantes do estudo e da reflexão, ler, passear, apreciar a natureza. Sabemos só que temos de trabalhar sempre mais e ser competitivos para chegar mais longe do que os nossos pares transformados em nossos adversários. E, no fim disto, que não é pouco, sentimo-nos realizados? Somos felizes? Provavelmente não. Provavelmente trabalhamos sem descanso para cabermos nos diversos moldes que nos destinaram e nos arquétipos de sucesso que conhecemos e esquecemo-nos daquilo que temos de único e só nosso, que nos poderia dar prazer e tornar-nos melhores. E, sempre com o foco em nós próprios, perdemos a capacidade de iniciar ou manter relacionamentos porque a nossa perceção dos outros se vai reduzindo, enquanto nos sentimos cada vez mais esgotados e mais infelizes.

É na capacidade de fazer alguma coisa pelos outros que encontramos a possibilidade de fazermos alguma coisa por nós próprios. É na capacidade de sentir compaixão que poderemos regressar à nossa condição humana. O termo compaixão, tendo perdido a sua conotação exclusivamente religiosa, tem sido frequentemente utilizado em comunicações e publicações científicas e designa a capacidade de ver claramente a natureza do sofrimento do outro e agir de modo a aliviá-lo. Neste sentido, a compaixão é uma união de sentimentos que gera atos de solidariedade e altruísmo, que são absolutamente fundamentais para a felicidade dos indivíduos e para a sobrevivência da humanidade. A compaixão assumiu até um valor económico, uma vez que, se as pessoas forem mais felizes, tornam-se mais produtivas e menos dispendiosas em cuidados de saúde. Na verdade, e voltando ao tema da renovação de que falava no início, é apenas necessário que nós, humanos, reaprendamos a ser humanos. Quarenta dias serão suficientes?

Daqui a 15.000 anos, se a humanidade ainda existir, gostaria que os cientistas pudessem dizer que o grande vestígio de civilização da nossa era tinha sido o desenvolvimento da nossa capacidade de nos pormos no lugar do Outro.

Emília Barroso
Emília Barroso é Professora e Cidadã de pleno direito, natural do Porto, reside em Alcobaça, e deu aulas a muitos alunos no externato cooperativo da Benedita.

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