Há pouco tempo, tive oportunidade de assistir a um recital de música de câmara brilhantemente executado pelos jovens músicos que compunham o trio de cordas com piano.
Música de câmara é a música erudita composta para um pequeno número de instrumentos, sem necessidade da presença de um maestro, e que poderia ser tocada em salas privadas, adquirindo, assim, um caráter mais intimista. Hoje em dia, por uma mão-cheia de razões bastante óbvias, estes recitais quase sempre se realizam em pequenas salas públicas, havendo lugar para uma pequena plateia que mantém com os músicos uma proximidade física potenciadora de uma observação mais detalhada. Estas linhas que aqui vos entrego dir-vos-ão da minha observação e da extrapolação que essa observação me sugeriu.
Quando quatro jovens com pouco mais de vinte anos se apresentam em público para partilhar com ele a sua destreza a tocar no seu instrumento obras de Richard Strauss e Robert Schumann, estão imediatamente a fazer-nos entender que, indubitavelmente, reservaram alguma da sua infância e muita da sua adolescência para aprender, estudar, repetir, treinar, melhorar, não só a execução de muitas peças, como a sua interpretação das mesmas. Acredito que foram muitas centenas de horas que estes jovens compaginaram com as atribuições escolares do ensino regular. O que os terá levado por esse caminho de alguma privação? Estou certa de que o fizeram porque quiseram, porque foram incentivados pelas suas famílias e professores, porque os caminhos difíceis não os assustam, antes os desafiam, por amor à arte. Porém, sejamos claros, nada disto está na moda. Aliás, eu diria que, na nossa sociedade hedonista, está até nos antípodas.
Ler, estudar, visitar monumentos e museus, apreciar a natureza, escutar música para além da música comercial não são atividades instagramáveis, não dão likes, não nos tornam influencers, seja lá isso o que for. Como competir com umas unhas com configuração e tamanho de garras de águia em versão néon se “só” se sabe tocar violino? Como brilhar mais do que o possuidor de um six pack lustroso e egocêntrico se “só” se sabe tocar piano ou viola d’arco? Como medir a sua popularidade com alguém que frequenta praias com coqueiros debruçados sobre mares de um azul impossível, em que a golden hour é fabulosa e as sunset parties propícias a profusas selfies de anatomias de botox, se “só” fizemos uma incursão transpirada e poeirenta às aldeias históricas que falam de gente sem glamour, ou se “só” acabamos de ler um livro de um autor genial de uma era anterior à inteligência artificial?
Na verdade, a tal inteligência não é inteligente nem artificial, é sim a acumulação do que as pessoas lhe fornecem, com a capacidade de dar respostas praticamente instantâneas. Por isso, para quê aprender, para quê esforçar-se, para quê trabalhar? Está ali tudo à mão! Pois, mas está ali tudo à mão de todos. Em breve, até esse espaço de liberdade e de crescimento dos indivíduos que dá pelo nome de criatividade e que nos permite sonhar, projetar o futuro e lutar pelo sonho será cada vez mais reduzido e teremos todos os domínios da vida a obedecer a um padrão do qual nem nos apercebemos. É isso que já nos faz achar normal que todos os canais de TV passem programas iguais e à mesma hora, que os textos jornalísticos tenham poucas diferenças, que as roupas, as caras, os corpos sejam, ou se queira que sejam, todos iguais.
Ah, que falta fazem as ciências sociais e humanas! A História, a Sociologia, a Filosofia, a Literatura! Essas disciplinas em que se investiga, se lê, se escreve, se analisa, se compreende, se debate, se cria!
Ah, que falta fazem as artes! A Literatura (sempre a Literatura!) o Teatro, a Pintura, a Música! Que nos fazem sair do nosso casulo, alargar os nossos horizontes, ver o mundo, em última análise, sentir pensando e imaginar sabendo.
Todas elas são difíceis, dão trabalho, requerem tempo, exigem coragem para falhar e persistência para voltar a fazer. Nada disto é particularmente apelativo, mas foram os quatro jovens que ouvi no recital que me trouxeram até aqui. Provavelmente perguntam-lhes por que não saem e se divertem mais, para que se esforçam tanto e que ganhos esperam obter com tal esforço. Suponho que eles não perderão tempo a responder. Escolheram outro caminho, o da preservação da sua liberdade, criatividade e humanidade e não estarão dispostos a renunciar ao quinhão de beleza que já é seu por direito.
Porque, em última análise, a Arte não foi o que eu ouvi, foi o que eles me fizeram sentir ao ouvi-los.