Amizade

Da Amizade

Da Amizade

A Amizade foi sempre um tema da maior importância na história da humanidade. Se quiséssemos selecionar os escritores que, através dos tempos, escreveram sobre este tema, teríamos uma tarefa longa e árdua.

Há mais de 4000 anos a Epopeia de Gilgamesh, um antigo poema épico mesopotâmico considerado a obra literária mais antiga da humanidade, apresenta a amizade como um sentimento capaz de tornar possíveis profundas alterações no comportamento humano. Permitam-me um rápido e informal resumo da obra, apenas para ilustrar o que aqui me traz hoje: Gilgamesh era um poderoso rei semideus, desafiador dos deuses, déspota, cruel e centrado em si próprio, que, inesperadamente, teve de se defrontar com o forte Enkidu, criado pelos deuses para o humilhar. Ao longo do poema, verificaremos que, após uma primeira fase de confronto e luta sem que houvesse um claro vencedor, os dois passaram a respeitar-se, edificando sobre esse respeito mútuo a amizade que viria a fazer nascer um novo e mais humano Gilgamesh.  Ao entrar na sua vida, Enkidu mostrou-lhe que não era invencível e apontou-lhe um outro caminho que ambos percorreriam em conjunto, contando um com o outro, já não porque se temiam, mas porque se respeitavam e se protegiam.

A definição de amizade inclui sempre noções como afeto, entendimento, confiança, dedicação, compromisso, proteção; em última análise, é da noção de companheirismo que falamos. Aquele companheirismo que, em alguns momentos, nos faz sentir perdidos sem o Outro, porque com ele nos sentimos mais poderosos, mais sólidos, mais humanos, melhores pessoas, como se nos tornássemos numa entidade superior da qual fazemos parte, mas que nos transcende.

Vivemos numa “sociedade de surdos” como lhe chamou o cardeal Tolentino de Mendonça, o que abre alas para a polarização a que se vem assistindo. Todos têm a sua opinião, todos a querem dizer, por vezes violentamente, mas quase ninguém quer ouvir o outro. Não temos espaço nem tempo para escutar, não temos curiosidade pelos outros, centramo-nos em nós próprios, condenamo-nos a essa solidão angustiante de alguém que considera que qualquer diferença é um impedimento e não uma complementaridade. Estamos sozinhos no meio da multidão porque aprendemos o primado do individualismo e da competição e deixamos de entender que essa circunstância nos enfraquece e que só o estarmos juntos nos pode fortalecer.  Teoricamente ainda definimos amizade e amigo com alguma precisão, mas logo a seguir surge-nos o cliché “os amigos são para as ocasiões”, cujo significado, aliás, me parece bastante mais adequado à nossa condição atual, de tirar partido dos outros conforme nos vai dando jeito. Na verdade, somos todos competidores e esse facto impede-nos de baixar as guardas e mostrar as nossas fraquezas, como se a vida fosse um jogo e estivéssemos sempre a fazer bluff. E, no entanto, ainda sabemos, sentimos, que amizade é intimidade, é conversas longas e lentas, é rios de lágrimas e gargalhadas cúmplices, é abrir o coração sem medo de parecer ridículo, é ter tempo, é ter ombro para absorver uma lágrima, é ter braços para amparar uma queda, é ter mãos para estender e dar e ajudar a levantar. É compromisso. Sempre. E é esta singularidade que torna a amizade ainda mais difícil, porque ela não é automática, não é uma inerência da nossa condição de humanos, mas sim uma construção que, em liberdade e igualdade, decidimos fazer em conjunto com o Outro, apesar das diferenças ou por causa delas. Os amigos entram no nosso mundo e acrescentam-lhe a sua configuração, ao mesmo tempo que nos permitem fazer o mesmo, abrem-nos a novas perspetivas, modificam-nos e recentram-nos na importância da relação com o Outro.

Quando dizemos que temos um amigo para a vida, estamos apenas a ser redundantes. Claro que é para a vida! Um amigo é aquele que decidiu ser nosso companheiro de viagem e não entende a sua própria caminhada sem nós, quer estejamos ou não fisicamente lado a lado.

Os amigos são os irmãos e irmãs que escolhemos e nos escolheram.

A amizade tem sabor a casa, a natureza, a tardes de verão.

Editor Web
António Moreira Prof. Adjunto no Instituto Politécnico de Santarém Escola Superior de Desporto de Rio Maior Doutorado em Ciências do Desporto - UTAD Presidente da Direcção da Sociedade Portuguesa de Medicina Chinesa Especialista em Medicina Tradicional Chinesa pelo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar - ICBAS da Universidade do Porto É Director do RMJORNAL.com
https://rmjornal.com

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