Casas ou lares?
Os políticos, ideológicos e precipitados como são, enunciaram medidas corretivas de acordo com as suas cores partidárias – mais liberais ou menos liberais, como se se tratasse de uma qualquer questão socioeconómica.
No debate a que temos assistido, uns acham a legislação sobre esta matéria demasiado “venezuelana”, outros, também da oposição, aquém do necessário para termos “casa para todos”. Mas o debate, na minha modesta opinião, centra-se demasiado em abstrações e não inclui, ou não repara, ou não quer saber, por exemplo, desse altruísmo solidário tão comum nos portugueses: a generosidade.
Sim, a generosidade.
Eu explico.
Numa breve consulta que fiz a cinco proprietários/senhorios meus amigos, constatei que quatro deles alugavam as suas casas abaixo, muito abaixo, do preço médio do mercado de arrendamento, só um dos senhorios cobrava aos inquilinos valores ditados pela “bolsa” imobiliária.
Claro que isto vale o que vale, nem do ponto de vista estatístico podemos considerar os cinco empresários como uma amostra significativa, nem sequer devemos tirar a conclusão de que parte da solução da falta de casas passa, assim, por uma política de auxílios privados “bonzinhos”.
Pelo que pude ouvir dos pequenos proprietários/alugadores, a generosidade deles tem apenas um fundo de bom senso: compreensão pelas dificuldades que os imigrantes sentem; perceção que eles nos fazem falta, como pão para a boca, sobretudo para a economia; que a casa precisava de ser habitada; que são famílias com crianças; que o pai faz, inclusivamente, pequenas reparações de conservação na casa, etc., etc. Bom senso, afinal, combina com generosidade. O problema é que é uma generosidade clandestina porque a partir do momento em que fosse declarada teria que pagar imposto e a seguir ao imposto viria o encarecimento da renda.
Um país é uma organização extraordinariamente complexa, de dimensões gigantescas e com preocupações genuínas de inclusão e coesão sociais e, para Portugal funcionar, isto é, para termos hospitais, escolas, estradas, etc., os impostos são necessários e essas contribuições muitas vezes “doem”, mas quando se constata que os portugueses para ajudar a abrigar as famílias mais carenciadas, muitas vezes em SOS, têm que pagar taxas superiores a 20%, algo vai mal no reino da habitação.
Parece que estamos condenados a viver simultaneamente em dois mundos paralelos, com os que podem pagar impostos num andar iluminado e com a Dona Generosidade, numa cave escura. É o que dá tentarmos resolver os problemas com soluções demasiado abstratas, com régua e compasso, com estereótipos ideológicos rígidos. Faz-nos falta a introdução de fatores de moderação humanos, de benefícios fiscais para quem é solidário por impulso. Para quem aluga generosamente a segunda e a terceira casa que herdou.
Passou a Páscoa. Antes da ressurreição, Cristo viveu horas de suplício tão bem retratadas no quadro “A flagelação de Cristo” de Caravaggio. Vejam-no e ignorem o claro-escuro desta crónica.