Brinca Enquanto Souberes
As férias de verão convidam sempre a momentos (aparentemente) mais calmos: a agenda não é tão preenchida e existem mais oportunidades para parar, refletir e ocupar a mente. É nas idas à praia ou nas viagens de avião que compreendemos como cada um faz a sua autogestão. Nas rotinas de muitos, ainda é possível encontrar o «navio/para viajar» ou o «jardim/para brincar» de que Luísa Ducla Soares nos fala no poema «Livro». No entanto, cada vez menos as nossas crianças contactam com estas maravilhas. Os momentos de leitura partilhada, que tão importantes são na formação de futuros leitores, como defende Michel Desmurget, são substituídos pelos ecrãs recreativos. Por falta de tempo, muitos pais vendem a mentalidade das suas crianças à bela publicidade e a conteúdos inapropriados e pouco educativos. Que futuro estamos a dar às nossas crianças?
A propósito desta questão, Carlos Neto, professor catedrático jubilado da FMH-UL e especialista na área da brincadeira, muito tem alertado para o facto de termos «crianças analfabetas do ponto de vista motor». O aumento do número de horas que as crianças passam nos ecrãs destrói o seu caminho de aprendizagem e crescimento. É crucial deixarmos as crianças criarem laços com a natureza, caírem as vezes que forem precisas, sujarem a roupa e o meio envolvente, berrarem e fazerem o caos. Sem darmos conta, estamos a dar espaço às crianças para aprender e imaginar. A escritora americana Sandra Cisneros, recentemente, numa entrevista, explicava que «a imaginação requer tempo e calma». A construção dos génios, que a nossa sociedade competitiva tanto aguarda, não pode passar pelos ecrãs e pelo relógio que obrigam a um crescimento e desenvolvimento repentino. Tudo tem o seu tempo!
Na verdade, o sistema educativo português não ajuda nesta questão. Além do elevadíssimo número de horas que as crianças passam na escola, sentadas, sem desenvolverem outras áreas do saber, encontramos uma educação que em quase nada mudou – os alunos anotam, memorizam, fazem o teste, têm boa nota, são alunos de excelência. O problema coloca-se quando lhes é solicitado que relacionem, interpretem ou interliguem ideias.Ao dia de hoje, em vários casos, a excelência é enganadora e fruto das abordagens robóticas que prevalecem na educação e que não preparam os nossos jovens para os desafios da Vida. Não pode existir excelência quando temos alunos de mérito a ingressar no Ensino Superior sem nunca terem lido um livro na íntegra. Temos de ensinar as crianças e jovens a fazerem aquilo que as máquinas não fazem!
No caso da Literatura, no estudo de uma obra literária, mais do que fazer questões sobre quantas personagens existem, o que vestem, e em que espaço e tempo estão, talvez seja mais pertinente compreender e interpretar a mensagem que esses e outros elementos oferecem ao leitor de hoje. Aliás, nesta linha de pensamento, Umberto Eco explica que os livros devem ser submetidos a investigações e que diante deles «não devemos perguntar o que dizem, mas o que querem dizer…». Este tipo de exercício permite um trabalho de estímulo crítico, de diálogo, de reflexão, tantas vezes anulado pelo consumo de conteúdo digital vazio e destrutivo.
Assim, compreendamos que «O tempo livre não é apenas o nosso presente. Prepara, acima de tudo, o nosso futuro.», tal como explicou o economista Olivier Babeau, no livro La Tyrannie du divertissement, provando que a leitura e a liberdade de imaginação, durante a infância, desempenham um papel fundamental na construção cognitiva e emocional do futuro adulto. Isto não significa que o uso da tecnologia tenha de ser abolido, mas sim doseado e vigiado. Que sejamos agentes de mudança e não permitamos que a infância de hoje continue «exposta a uma orgia digital». Se por dia utilizarmos 15 minutos para ler uma história às nossas crianças, totalizamos mais de mais de 5 mil minutos anuais dedicados ao desenvolvimento da sua imaginação e do seu pensamento crítico – ajudamos a construir Leitores.
Fiquemos com o verso «Brinca enquanto souberes!», do poema ‘’Pedagogia’’, de Miguel Torga, que incita os jovens a nunca perderem a beleza da brincadeira, no seu sentido mais puro e genuíno. Brincar para aprender, desenvolver, imaginar e criar – uma forma saudável de crescer e florescer.
Silva Coito, 15.08.2024
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