Novelas da Vida Real
O mundo insiste em escancarar-se em falso a céu aberto. Em soltar as entranhas disfarçando-as de perfeições, em maquilhar desastres e em embelezar os rasgos imortais das histórias que vivemos (não lhe roubo o direito, mas confesso que a este cenário, prefiro o silêncio ou a discrição).
Todos os dias me cruzo com inúmeras pessoas que já adquiriram a sua sabedoria de mestre na arte de representar. Como se todos tivéssemos nascido com um dom inato para o teatro, para a novela esperada pela sociedade estandardizada, para a técnica de fantasiar a nossa vida muito além do desejável. Iniciam o dia sem o espelho da alma, e em cada viagem escolhem esconder para elas próprias o seu caminho pessoal. Pincelam desgostos de cores garridas, medos de contos de encanto, raivas de vestidinhos de chita e saem para a rua, crentes no seu ar sereno.
No primeiro cruzamento ou na esquina da rua cumprimentam o vizinho com a mesma disciplina com que encaram cada tela que pintam pela manhã, cobertas em si mesmas, opacas, saltitantes.
Socializam com um alter ego engrandecido, petiscam ao fim do dia com um dos projectos inacabados do seu próprio Eu, e deitam-se na cama sempre vestidos, de alguém que aceita a realidade de adormecer e acordar sem pensar ao certo se é ali que querem estar.
As férias que já passaram decorreram devagar, quentes, salpicadas pelas gotas do mar e pelos raios de sol (para o ano há mais).
As aulas dos filhos regressam na monotonia do Outono, a rotina instala-se, sempre salvadora, como só ela sabe ser: ajuda-nos a domar as incertezas da mente, que por vezes, astuta, tende a acordar.
A próxima miragem é o Natal, outro ponto estratégico do ano que nos permite canalizar as energias do belo e da ficção. Já se pensa na decoração ( e saberemos lá nós outra realidade?), nos presentes, nas refeições em família, que não raras vezes encerram antagonismos que ninguém fala, fantasmas que ninguém destapa, raízes que dão a volta ao mundo de cada qual, fortes na essência e na persistência, implacáveis como uma prisão ( e tantas seguranças encontramos nelas).
Todo o ano é criteriosamente ornamentado de datas fabricadas para esta continuidade. Está moldado à luz do expectável, do vendável, da celebração conjunta da extravagância caprichosa a que o ser humano insiste em entregar-se, paciente e tolerante, como se a vida fosse uma conquista pouco essencial, e o tempo, um bem de segunda necessidade, que de pode dispender sem critério e sem precisão.
Todo este trajecto assenta no aval do conservadorismo, uma espécie de falsa pertença que sara a dor e responde a todas as dúvidas, manifesta na sociedade há gerações, validada por séculos de ditames escorreitos e quase inconvertíveis. Assenta na passividade da aceitação e na ignorância do self, no fraco empreendimento no Eu, na ausência de busca pelo nosso interior, e numa sequência cadente e morna, responsável pela tradição, pelo dogma, pelo hábito.
Admito que todas estas grandezas possam ser necessárias ao nosso alicerce enquanto pessoas. Admito que nos norteiem, nos eduquem, que nos regulem e que nos amparem os passos que sabemos serem a nossa zona de conforto, a nossa casa, o nosso lar. Mas continuo a ter dificuldade em conceber que nos impeçam de evoluir, pelo medo de olharmos de perto para o nosso próprio processo, para a tristeza, para a zanga, para o interior.
A mim, não raras vezes, acusam-me de melancolia. De excesso de pensamento, pessimismo, ruminação ou reflexão. Há dias em que me apetece mandar calar essas vozes, são impertinentes, sobranceiras, perdidas na fraqueza da sua própria altivez. E gritar-lhes bem alto que tenho ambições bem maiores, do que a mera busca da felicidade.
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Carla Raposo Ferreira, é Psicóloga e escreve às Segundas-feiras no Rio Maior Jornal.