Questiono-me inúmeras vezes sobre os processos de adaptação.
Inquiro-me, entusiasticamente, sobre a responsabilidade da sociedade e do ser humano enquanto pessoa individual neste processo, e sobre o local exacto onde a mesma reside: se da sociedade em relação ao indivíduo, se do indivíduo em relação à sociedade.
Muito embora a resposta cabal tenda a ser a segunda opção, por questões inerentes ao funcionamento global, parece-me que a emergência da liberdade e da personalidade, associado ao despontar do Eu das últimas décadas, nos encaminham para um processo bem mais complexo do que a elaboração de regras e normas que tutelem a nossa existência. Porém a ancestralidade da história é dogmática, insiste nos valores de sempre, na moral, nos costumes, nas escolhas que beneficiam a inserção na sociedade enquanto um todo, funcional, direccionada, completamente indexada à viabilidade económica e capitalista.
Compreendo o fundamento, também eu me debruço sobre a continuidade da sustentabilidade do mundo, mas não posso deixar de questionar o lugar do indivíduo enquanto pessoa, no encaixo global deste funcionamento.
Nascemos. O mundo encarrega-se de nos introduzir no sistema sem tempos fluídos, obedece aos ditames das necessidades do mercado de trabalho, que decide quase sempre quanto tempo a mãe e o pai podem ficar em casa com os filhos. Introduz, muitas vezes, quantas horas a criança fica na escola, em que escola poderá ficar, o que irá comer e a que horas dorme a sesta. Decide em que actividades irá passar o seu tempo “livre” vida afora, nem sempre pelo superior interesse individual, mas sim pelos horários que façam sentido e complementem o trabalho dos pais. Escolhe o que ensina, em que idade o faz, e perde muito pouco tempo com o ritmo de cada qual. Não se compadece com dúvidas existenciais, não se debruça sobre as áreas de interesse dos adolescentes, e não se preocupa se os mesmos se encontram enviesados, toldados por pressões, estigmas, dificuldades financeiras ou traumas passados.
Não tem muito tempo para perceber o que cada um necessita para se sentir adequado, porque adequa de forma cega o ser humano à necessidade da sociedade, e não o inverso. No decorrer do percurso do sistema exclui seriamente as eventuais excepções, que são muitas (serão no limite, cada pessoa), e normaliza pesos, visões, ideais políticos e escolhas pessoais.
Critica o que foge à regra da métrica absoluta, e tenta padronizar quem o permite, não querendo saber ao certo os danos colaterais que cada interior irá manifestar, preso no seu próprio corpo, pouco complacente com estas incongruências: porque é incongruente domarmos o espírito interno, ao que a sociedade espera de nós.
Desconheço, por falta de dados, o que obteríamos com a orientação inversa. Não sei ao certo em que mundo viveríamos, que normas nos iriam reger, que norte seria o de cada qual, e que sociedade encontraríamos, se colocássemos o espírito individual sobre o espírito de grupo. Eventualmente poderíamos levitar perdidos numa espécie de liberdade aterradora, a mesma que hoje em dia parece condicionar o povo em diversas nações, sedentas de voz de comando e de forças que as sustentem, com base na confiança do que se conhece.
Porém, a minha análise tende para outras direcções. Identifico esta necessidade de pertença, esta submissão “salvadora”, como um processo de uma evolução restrita, à qual sujeitamos o ser humano através da excessiva padronização do mundo. O espaço para crescer, ser, e existir de forma mais plena, anula-se no impacto da formatação, inimiga do pensamento e da vida interna, embutida de traumas e de consequências nefastas para a nossa evolução enquanto espécie, o que a torna insegura de si mesma, carente de pertença, isenta de capacidade de escolha e de assumpção individual.
Como tal, continuo a acreditar que a liberdade e o respeito são bem mais importantes para o todo, do que a simples soma de todas as partes “iguais”, que mais não constroem do que uma massa funcional de inúmeros indivíduos, perdidos do seu próprio lugar.
” Não sou eu que tenho de me adaptar a Lisboa, é Lisboa que tem de se adaptar a mim”. Frase proferida por António Variações, no filme “Variações”, de João Maia, produzido por Fernando Vendrell, companhia David & Golias, 2019.
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Carla Raposo Ferreira, é Psicóloga e escreve às Segundas-feiras no Rio Maior Jornal.